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terça-feira, 3 de maio de 2016

LINHA M

A prosa memorialista de Patti Smith (nascida Patrícia Lee) está repleta de melancolia e de reflexões filosóficas. Linha M (ao contrário de um livro anterior, Só Garotos, que celebra a rebeldia e a juventude) revela uma escritora madura, que se preocupa em olhar para a vida com olhos críticos. Que celebra as perdas e os desencontros. Costurando literariamente diversas lembranças em uma espécie de colcha de retalhos que conserva (apesar da pátina do tempo) suas cores originais vívidas e nítidas na memória, Patti Smith seduz o leitor com doses maciças de uma prosa encantatória.

O livro é uma espécie multifacetada de diário de viagem, onde o particular e o público se mesclam em um caldeirão cultural. Ofereço meu mundo numa bandeja cheia de ilusões, diz a autora, enquanto vai convocando amigos, familiares, escritores, séries policiais televisivas, figuras literárias. Uma multidão de referências culturais. Depois de iluminarem algumas histórias, alguma situação, esses personagens desaparecem sem deixar rastro. O único que permanece em cena o tempo todo, sempre ao lado da narradora, é o seu marido, Fred "Sonic" Smith (1949-1994). As lembranças da vida conjunta, quando a felicidade era algo palpável, servem de base para a resiliência existencial.

Levantei e fiquei um momento na janela, olhando para as luzes de Shibuya e para o monte Fuji. Depois abri uma garrafinha de saquê.

– À sua saúde, Akutagawa. À sua saúde, Dazai – falei, esvaziando o copo.

– Não perca seu tempo conosco – eles parecem ter respondido –, nós somos apenas uns vagabundos.

Voltei a encher o copinho e o entornei.

– Todos os escritores são vagabundos – murmurei. – Espero ser considerada uma de vocês algum dia.


Tudo é deslocamento na vida de quem escolheu a arte como profissão. Shows, palestras, visitas aos amigos e familiares, milhares de horas em voos que parecem nunca ter fim. Em cada uma das vezes em que seus pés tocam o solo, incontáveis xícaras de café. Nada é mais impressionante do que a quantidade de café que Patti Smith consome em um livro de apenas 206 páginas. E pouco importa onde esteja (Berlim, Tóquio, Londres, Cidade do México), sempre está acompanhada por hectolitros de café. Sem saber se é um vicio ou um anestésico, o leitor fica surpreso com a importância desse líquido na vida de Patti Smith.

Estico minhas pernas e fico contemplando Zak cumprir suas tarefas matinais. Ele nem faz ideia que eu já sonhei em ter um café. Acho que essa vontade surgiu com leituras sobre a importância dos cafés na vida dos beats, dos surrealistas e dos poetas simbolistas franceses. Não existiam cafés onde eu cresci, mas havia nos meus livros, e eles floresceram nos meus sonhos. Em 1965, eu vim de South Jersey a Nova York só para perambular por aqui, e nada me parecia mais romântico que sentar e escrever poesia num café do Greenwich Village. Finalmente tive coragem e entrei no Caffè Dante, na MacDougal Street. Sem dinheiro para pedir uma refeição, só tomei um café, mas ninguém pareceu ter se incomodado. As paredes eram revestidas de murais impressos com a cidade de Florença e cenas da A Divina Comédia. As mesmas cenas que perduram até hoje, descoloridas por décadas de fumaça de cigarro.


Os livros também são companhias inseparáveis. Sempre está lendo alguma coisa. Fã obsessiva de O Mestre e a Margarida, de Mikhail Bulgakov, e de 2666, de Roberto Bolaño, costuma voltar aos livros de William Burroughs, Jean Genet, W. G. Sebald e Paul Bowles. São amigos espirituais. Além disso, sempre está preparada para celebrar a intensidade dos encontros inesperados. Como o dia em que descobriu os romances de Haruki Murakami, na livraria St. Mark’s, em Nova York, enquanto procurava por romances policiais de Henning Mankell. Começou com Caçando Carneiros. Evoluiu para Dance Dance Dance e Kafka à Beira-mar. No entanto, o seu favorito é outro, Crônica do Pássaro de Corda. Durante algum tempo, ela carregou de um lado para outro um exemplar desse livro, até que o perdeu no banheiro do aeroporto de Houston, durante uma baldeação.

Patti Smith e Fred "Sonic" Smith
Nas horas vagas passa horas e mais horas em frente da televisão assistindo séries policiais. Tem particular apreço por The Killing, O Santo, CSI, Detective Frost e Cracker, entre outros. Nesses momentos, desliga o mundo “real” e mergulha na ficção. Nem sempre é necessário ser racional ou coerente. A fantasia também faz parte do sonho.

Em suas viagens, costuma frequentar cemitérios. Pode parecer mórbido, mas é uma forma de festejar a existência. Diante dos túmulos de Jean Genet, Sylvia Plath, Jean-Nicholas Arthur Rimbaud, Yukio Mishima, Akira Kurosawa, Riūnosuke Akutagawa, Osamu Dazai e Yasujiro Ozu, rezou, acendeu incenso, recordou histórias, se sentiu revigorada, infeliz e alegre. A vida dos mortos afasta a morte dos vivos. 

Vida, Sylvia. Vida.

Não vi o balde cheio de canetas, talvez fosse retirado no inverno. Revirei os bolsos e tirei um caderninho espiralado, uma fita roxa e uma meia de algodão fina com uma abelha bordada no cano. Amarrei tudo com a fita roxa e deixei na lápide. As últimas luzes já esmaeciam quando voltei andando em direção ao pesado portão. No momento em que eu estava quase chegando ao carro o sol reapareceu, como que por vingança. Comecei a me virar, quando uma voz sussurrou:

– Não olhe para trás, não olhe para trás.

Era como se a mulher de Lot, uma estátua de sal, tivesse surgido no terreno coberto de neve e projetado uma faixa e calor alongado, derretendo tudo em seu trajeto. O calor atraiu vida, bem como tufos de vegetação e uma lenta procissão de almas. Sylvia, com um suéter cor de creme e uma camisa lisa, protegendo os olhos do sol brincalhão, caminhando para um grande retorno.

No inicio da primavera visitei o túmulo de Sylvia Plath uma terceira vez, acompanhada de minha irmã Linda. Ela queria muito viajar pela terra das irmãs Brontë, e nós fizemos isso juntas. Seguimos os passos das Brontë e subimos a serra para então refazer os meus. Linda se deliciou com os campos verdejantes, as flores silvestres e as ruínas góticas. Eu fiquei em silêncio ao lado do túmulo, consciente de uma rara paz em suspensão.


São muitas as situações peculiares que Patti Smith descreve. Algumas são bizarras, como o encontro com Robert (Bobby) James Fischer, o ex-campeão mundial de xadrez (1972-1975), que terminou com os dois cantando alguns clássicos da música estadunidense. Ou uma das viagens que ela e o marido fizeram. Quando ela leu Diário de um Ladrão, de Jean Genet, encontrou uma passagem em que o mais marginal dos escritores franceses cita uma prisão, localizada em Saint-Laurent-du-Maroni, no Suriname. Movida por um desejo fora do comum, coletar algumas pedras do terreno e enviar para Genet, o casal foi até lá. Não foi uma decisão sensata. Outro momento crítico do livro está relacionado com o Continental Drift Club, um grupo de pessoas que se reunia para celebrar a memória do explorador Alfred Wegener, que morreu congelado na Groenlândia. São diversos episódios complicados, repletos de nuances e surpresas.

Patti Smith e Robert Meppethorpe
Patti Smith vive cercada de incontáveis objetos. Máquinas fotográficas, canetas, xícaras, garrafas, cadernos, roupas, caixas, livros. Descreve cada um deles com intimidade, com afeto. Mesmo aqueles que não são seus, como a bengala de Virginia Wolff, as muletas de Frida Kahlo ou a mesa oval que testemunhou a conversa entre Friedrich Schiller e Johann Wolfgang von Goethe.  Há um tom de reverência e respeito toda vez que cada um desses objetos aparece na narrativa. Para complementar esse sentimento de apego aos utensílios que povoam o viver, em determinado momento, Patti decide comprar uma casa quase destruída, em Rockaway Beach. Quer fazer desse lugar um novo lar. O destino conspirou para que parte desse projeto fosse adiado. O furacão Sandy devasta a costa leste estadunidense. Mas, as ruínas que constituíam o Álamo (denominação escolhida para o local) não são muito afetadas. Diante da natureza, os homens se curvam – em reverência. E iniciam a reconstrução.

De inicio não registrei, mas depois percebi que o toldo vermelho do ’Ino não se encontrava mais ali. A porta estava fechada, mas vi Jason lá dentro e bati na vitrine.

– Que bom que você veio. Vou reparar um último café pra você.

Eu estava atordoada demais para falar. Ele ia fechar o lugar, simplesmente assim. Olhei para o meu canto. Vi a mim mesma sentada lá em incontáveis manhãs ao longo de incontáveis anos.

– Posso sentar?

– Claro, vai nessa.

Fiquei lá a manhã toda. Uma garota nova que frequentava o café passou com uma Polaroid idêntica à minha. Acenei e saí para cumprimentá-la.

– Oi, Claire, você tem um minuto?

– Claro – ela respondeu.

Pedi para ela tirar uma foto minha. A primeira e última foto na minha mesa de canto no ’Ino. Ela ficou triste por mim, tendo me visto muitas vezes pela vitrine quando passava. Tirou algumas fotos e deixou uma delas na mesa – a imagem do desolamento. Agradeci e ela foi embora. Fiquei lá um bom tempo, pensando em nada, depois peguei minha caneta branca e escrevi sobre o poço e o rosto de Jean Reno. Escrevi sobre o vaqueiro e o sorriso irônico do meu marido. Escrevi sobre os morcegos de Austin, no Texas, e sobre cadeiras metálicas na sala de interrogatório de Criminal Intent. Escrevi até a exaustão, as últimas palavras escritas no Café ’Ino.

Antes de nos despedirmos, eu e Jason passamos os olhos por todo o local. Não perguntei por que ele ia fechar as portas. Imaginei que tivesse suas razões, e, de qualquer forma, a resposta não faria diferença nenhuma.

Disse adeus ao meu canto.

– O que vai acontecer com as mesas e cadeiras? – perguntei.

– Está falando da sua mesa e da sua cadeira?

– Sim, principalmente.

– São suas – ele disse. – Eu levo para você mais tarde.

Naquela noite, Jason levou a mesa e a cadeira de Bedford Street pela Sexta Avenida, a mesma rota que eu fazia havia mais de uma década. Minha mesa e a cadeira do Café ’Ino. Meu portal para onde.   


A poesia lírica que emana de “Linha M”, misturando lembranças e sonhos, traduz, de forma serena, a tristeza que acompanha os danos causados pelo viver em sociedade. Ao mesmo tempo,comemora a pureza dos sentimentos e o encanto que ilumina cada dia. “Linha M” pode ser traduzido como um sopro de inteligência em um mundo que está se decompondo.

– Eu amo vocês, murmurei para todos, para ninguém.

– Não brinque com o amor – eu o ouvi dizer.

Depois disso eu saí de lá, sempre em frente no lusco-fusco, caminhando no chão de terra batida. Andei até atravessar o limiar de meu sonho. Não havia nuvens de pó, nem sinais de ninguém, mas não me importei. Eu estava com sorte no meu jogo de paciência. A paisagem do deserto continuava igual: um longo e extenso pergaminho que um dia eu me divertiria preenchendo. Vou me lembrar de tudo e vou escrever tudo isso. Uma ária a um casaco. Um réquiem a uma cafeteria. Era no que eu estava pensando no meu sonho, olhando para minhas mãos.

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