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quarta-feira, 10 de agosto de 2016

A CIDADE & A CIDADE

Um dos aspectos mais surpreendente dos estudos literários é a falta de conexão entre a literatura e a geografia. Claro, existem os livros do Franco Moretti (Atlas do Romance Europeu, 1800-1900 e A Literatura Vista de Longe), Gaston Bachelard (A Poética do Espaço) e Alberto Manguel e Gianni Guadalupi (Dicionário de Lugares Imaginários), entre outras tantas tentativas de estabelecer olhares sobre o tema. Mas, sem desprezar isto ou aquilo, há outras dimensões – e que ainda não foram desvendadas ou estudadas com a devida atenção que o tema requer. Por exemplo, a questão das estruturas geo-espaciais que assumem no interior da narrativa a importância de um personagem requer uma análise mais detalhada. Em alguns textos, mais do que um mero suporte para que o enredo possa se situar e se desenvolver, a geografia identifica (ou revela) elementos que contribuem de forma decisiva para que a verossimilhança esconda, na medida do possível, o artificialismo narrativo. O incremento ficcional (para quem escreve, para quem lê) adquire um valor inestimável. 

China Tom Miéville (nascido em 1972) 
O inglês China Tom Miéville, um dos nomes mais importantes da new weird (um subgênero da literatura de fantasia, de cunho realista, que orbita em torno da ficção científica e das narrativas de horror), forneceu significativa contribuição para o tema com o romance A Cidade & A Cidade.

As cidades gêmeas de Besźel e Ul Qoma, situadas em lugar impreciso na Europa Oriental, estão sobrepostas. Embora constituam nações independentes, com línguas (besź e illitano), sistemas políticos e econômicos diferentes, há uma zona (in)comum, um espaço físico em que a área urbana de uma se confunde com a de outra. A simetria siamesa se sustenta em um conjunto de regras (procedimentos, comportamentos) que precisam ser obedecidos para que cada uma delas conserve a identidade e as características que lhe são peculiares – embora os componentes especulares mostrem que cada uma das cidades é similar à outra (mesmo nos momentos em que são diferentes).

Os habitantes de cada uma das cidades (não importa qual) precisam “desver” os habitantes da outra cidade. A sobrevivência dos indivíduos está ligada ao conceito de não-existência do Outro. Reconhecer a presença daquele que está (sem estar) ao lado implica em severa punição. Qualquer relação com o paradoxo de Schrödinger não deve ser entendida como mera coincidência. 

Somente aqueles que possuem algum tipo de interesse (comercial, político, acadêmico) no outro lado recebem permissão para, através de Copula Hall, única conexão legal entre as duas cidades, atravessar a fronteira – passaportes e vistos são exigidos.

O fio narrativo de ”A Cidade & A Cidade está alicerçado em uma morte – Mahalia Geary, uma estudante de arqueologia, foi assassinada em Ul Qoma e o seu cadáver foi encontrado em Besźel. A possibilidade de ter ocorrido uma “brecha” (uma transgressão) não pode ser omitida. Cabe ao Inspetor do Esquadrão de Crimes Hediondos Tyador Borlú (protagonista e narrador do romance) desvendar esse mistério. Ao longo da investigação, que transcorre nas duas cidades, há um desfile de personagens dos mais variados matizes ideológicos. A política (seja de unificação das duas cidades, seja de distanciamento físico e geográfico) se mostra onipresente. Com o passar do tempo, Borlú descobre que, diante do que está em jogo, a morte de Mahalia não têm a mínima importância.

A aplicação implacável de um sistema jurídico recíproco garante relativo equilíbrio na história de rivalidades e agressões mútuas entre as duas cidades. Dependendo da gravidade da brecha, cabe invocar a Brecha (assim, com letra maiúscula), ou seja, torna-se necessário delegar autoridade para que um dispositivo militar resolva, sumariamente, a questão. Inexplicavelmente, com a morte de Mahalia Geary, que constitui uma evidente infração do código social, o uso desse mecanismo não é permitido pela Comissão de Supervisão. Resta a Borlú prosseguir na investigação ou encerrar o caso, considerando-o como insolúvel.

Com fortes tons kafkanianos, A Cidade & A Cidade evoca a metáfora mitológica do labirinto – “topos” de caráter artificial, construído para que o indivíduo se confunda em sua jornada e tenha dificuldade para encontrar a saída da situação opressiva em que se encontra. Entre Besźel e Ul Qoma, a localização indeterminada contamina a existência daqueles que precisam transitar pelas ruas, praças e edifícios que instituem o território urbano das duas cidades. Em cada um dos lados da fronteira, em ambiente pouco amistoso, o espaço físico (via de deslocamento de personagens como Tyador Borlú, Lizbyet Corwi, Qussim Dhatt, David Bowden e Yolanda Rodriguez) se mostra decisivo para que a narrativa tenha fluência e desenvolvimento.

Ao final da leitura das 289 páginas que constituem A Cidade & A Cidade talvez seja necessário concluir, por diversos motivos, principalmente os políticos, que não há nada mais próximo da realidade do que a ficção.


TRECHO ESCOLHIDO


Aquele fedor de insinuação e mistério – por mais cínico ou desinteressado que você se considerasse, ele impregnava você. eu vi Corwi olhar para cima e para as fachadas pobres dos armazéns quando fomos embora. Talvez vendo um pouco demais na direção de uma loja que ela devia perceber que estava em Ul Qoma. Ela se sentiu vigiada. Nós dois nos sentimos, e estávamos certos, e nervosos.


Quando saímos, levei Corwi – uma provocação, confesso, embora não para ela, mas para o universos, de certo modo – para almoçar na pequena Ul Qomatown de Besźel. Ficava ao sul do parque. Com as cores e escritas particulares das vitrines de suas lojas, a forma de suas fachadas, os visitantes de Besźel que a viam sempre achavam que estavam olhando para Ul Qoma e desviavam o olhar com pressa e ostentação (o mais perto que os estrangeiros chegavam de desver). Mas com um olho mais cuidadoso, experiência, você repara no tipo de kitsch apertado do design dos edifícios, uma autoparódia anã. Você consegue ver os detalhes num tom chamado azul-Besźel, uma das cores ilegais em Ul Qoma. Essas propriedades são locais.


Essas poucas ruas – nomes mestiços, substantivos illitanos e um sufixo besź, YulSainStráz, LiligiStráz e assim por diante – eram o centro do mundo cultural para a pequena comunidade de expatriados ul-qomanos vivendo em Besźel. Eles tinham vindo por diversos motivos: perseguição política, autoaprimoramento econômico (e, como os patriarcas que haviam passado pelas consideráveis dificuldades da emigração, eles deviam estar amargando isso agora), capricho, romance. A maioria dos que têm quarenta anos ou menos é da segunda e agora terceira geração, fala illitano em casa, mas besź sem sotaque nas ruas. Há talvez uma influência ul-qomana em suas roupas. Várias vezes, valentões locais ou coisa pior quebram suas janelas e batem neles nas ruas. 

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