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segunda-feira, 1 de agosto de 2016

DIAS DE ABANDONO

A escritora italiana Elena Ferrante, cujo nome verdadeiro ninguém sabe qual é, escreveu um livro assustador: Dias de Abandono. A célebre autora da tetralogia Série Napolitana (somente foram publicados no Brasil os dois primeiros volumes, A Amiga Genial e História do Novo Sobrenome) mergulhou – com a perícia de um cirurgião – nas trevas produzidas pela desestruturação emocional. Em apenas 183 páginas, Olga (que acumula a dupla função de protagonista e narradora) descreve – com cores fortes e realistas – o instante em que ela, a personagem, atinge o grau máximo da alienação. A causa? Uma tarde de abril, logo após o almoço, meu marido me comunicou que queria me deixar. A simplicidade da informação contida na frase inicial do romance contrasta com a intensidade com que Olga transmite (através da narração) o seu sofrimento – imagem especular de outra história, ocorrida trinta anos antes, quando uma vizinha de Olga enlouqueceu, depois de ser abandonada pelo marido: (...) quando você não sabe segurar um homem perde tudo, (...), o que acontece quando, plena de amor, você não é mais amada, é deixada sem nada. A mulher perdeu tudo, até o nome (talvez se chamasse Emilia), se tornou para todos “a pobre coitada”, começamos a falar dela chamando-a desse jeito. A pobre coitada chorava, a pobre coitada gritava, a pobre coitada sofria, dilacerada pela ausência do homem vermelho suado, com olhos verdes de perfídia.

Dias de Abandono foi construído como um exercício prático das sutilezas que envolvem a tessitura da linguagem. O uso exagerado da emoção consegue vedar o artificialismo do discurso literário. Os lamentos de Olga são, na medida do possível, os lamentos do leitor – que, em muitos momentos, está impedido de escolher entre a empatia e a irritação. Parte dessa sensação está expressa sob a forma de monólogo interior – que se assemelha a uma conversa entre amigos, dessas em que há trocas de confidências, em que há o lastimar do amargor da vida.

Sem o marido, Olga precisa tomar conta dos dois filhos (Gianni e Ilaria) e de um pastor alemão (Otto). Não consegue. A mágoa, o rancor e as lembranças de um passado que ela julga ter sido feliz não permitem – principalmente depois que descobriu que Mário, o marido, a trocou por Carla (dezoito anos mais nova). Esse conjunto de sentimentos ruins é macerado – lentamente – ao longo dos dias. Movida pelo fel da loucura, Olga perde o controle. Passa a viver em um mundo particular, catatônico, onde a tristeza é a única companhia permitida. A apatia se torna uma constante.

Esses momentos estão repletos de cenas agressivas. Olga imagina que o marido está realizando com a amante todas as variantes sexuais que nunca praticou com ela. E comenta essa desgraça com detalhes. Obviamente, o desvario somente serve para ampliar a depressão. A realidade (a realidade que ela pode perceber) se transforma em névoa, lugar onde todos os indivíduos se transformam em figuras pastosas, sem identidade. E isso também vale para os filhos e o cachorro.

Como sair dessa situação? Difícil propor algum antídoto. Mesmo quando Olga resolve dar um basta, (...) tentei voltar aos gestos de sempre, como um doente que esteve por muito tempo no hospital e, também para superar o medo de adoecer novamente, deseja ancorar-se novamente à vida dos sadios, isso não parece ser suficiente. Algumas feridas jamais cicatrizam.

Dias de Abandono não é um romance fácil de ler. Talvez seja um romance fácil de arremessar contra a parede – embora me pareça inevitável retomar a leitura, dez minutos depois. Afinal, gostar de literatura significa não ter medo do que é incômodo.


TRECHO ESCOLHIDO


Reagir. Me pus a botar as coisas em ordem. Quando terminei, recomecei novamente, uma forma de ronda à caça de tudo aquilo que não parecesse estar em ordem. Lucidez, determinação, segurar-se à vida. No banheiro encontrei o caos de sempre entre os remédios. Sentei-me no chão e passei a separar os remédios vencidos dos que ainda estavam valendo. Quando todos os remédios inutilizáveis acabaram no lixo e o armário ficou em perfeita ordem, escolhi duas caixas de comprimidos para dormir e levei-as para a sala. Coloquei-as sobre a mesa, servi-me um copo bem cheio de conhaque. Com o copo numa mão e a palma da outra cheia de Rivotril fui até a janela, pela qual entrava só um sopro úmido de calor vindo do rio, das árvores.

Tudo era tão casual. Apaixonei-me por Mario quando jovem, mas poderia ter me apaixonado por qualquer um, um corpo qualquer ao qual atribuímos sabe-se lá quais significados. Um longo pedaço de vida juntos, e você já acredita que ele é o único homem com quem pode se sentir bem, atribui-lhe sabe-se lá quais virtudes decisivas, e em vez disso ele é só uma flauta que emite sons de falsidade, você não sabe realmente quem é, nem ele mesmo. Somos ocasião. Consumimos e perdemos a vida porque um qualquer, em tempos longínquos, por vontade de descarregar o pau dentro de nós, foi gentil, nos escolheu entre as mulheres. Trocamos não sei por qual cortesia dedicada exclusivamente a nós o desejo banal de foder. Amamos sua vontade de trepar, sentindo-nos tão cegas a ponto de pensar que seja a vontade de trepar conosco, só conosco. Oh sim, ele que é tão especial e que nos reconhece como especial. Damos um nome àquela vontade de pinto, a personalizamos, e a chamamos de meu amor. Para o inferno tudo, essa cegueira, esse tesão infundado. Como no passado fodia comigo, agora fode com a outra, o que posso querer? O tempo passa, uma vai, a outra vem. Estava por engolir algumas pílulas, queria dormir deitada sobre o fundo mais sombrio de mim mesma. 

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