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terça-feira, 9 de maio de 2017

UM AMOR INCÔMODO

A morte é uma forma de desvendar o inusitado. Em alguns casos, na medida em que alguns fatos são expostos, aquele(a) que deixou de existir se transforma em alguém diferente da imagem que estava trancada no santuário das recordações eternas. A decepção e o espanto se integram ao cenário, o tempo e o espaço se desintegram. Tudo fica nebuloso e longe das certezas. A vida, momento em que o sangue pulsa dentro do corpo, não recolhe impostos do passado – mas exige o pagamento de inúmeras taxas por cada dia da existência.

Quando Delia retorna à Nápoles para o enterro de sua mãe, Amália, que morreu afogada, o mundo estratificado em que ela vivia fica de ponta-cabeça. Descobre que a mãe era outra – completamente diferente daquela mulher que ela conhecia como “a” mãe. Envolta em uma nuvem de deslumbramento (uma forma complexa de revelação), que se espalha pela planície textual como se fosse uma tempestade de areia, Delia (que também é a narradora) se envolve em uma teia de complicações – surpresas, transtornos, perturbações.

A linha-mestra do romance Um Amor Incômodo, da italiana Elena Ferrante, publicado na Itália em 1992, expõe, com uma linguagem seca, cruel, verossímil, a violência familiar e as dificuldades econômicas e sociais da geração que viveu no pós-guerra. Sem economizar na dramaturgia do sensível, nas pequenas tragédias cotidianas que causam grandes estragos, no caos que resulta das relações amorosas inconclusas, a narrativa mergulha no interior da psique humana – volatizando tudo o que parecia sólido.

As casas não guardam fantasmas, mas retêm os efeitos das últimas ações em vida. Assim também ocorre com os afetos. Sem muitas dificuldades para se expressar, a narradora vai empilhando informações, acrescentando detalhes, mostrando – pedagogicamente – a maneira com que as distâncias físicas, temporais e emocionais afastam aqueles que, em algum momento, estiveram próximos. O reencontro entre esses personagens ocorre como remendo, como substituição de algo que se perdeu para sempre.

No centro de tudo estão as lembranças de um tempo pretérito, momento em que o pai de Delia, um artista plástico medíocre e que não consegue suportar que outro homem manifeste interesse por sua esposa, corroído pelo ciúme, comete uma serie de tolices.

Meu pai era um homem insatisfeito”. (...) “Uma vez cismou que um homem na multidão a tocara. Estapeou-a na frente de todos; na nossa frente. Fiquei dolorosamente assombrada. Eu tinha certeza de que ele mataria o homem e não entendia por que, em vez disso, a esbofeteara. Ainda hoje eu não sei por que o fizera. Talvez para puni-la por ter sentido no tecido do vestido, na pele, o calor do corpo de outro homem.


Esse ciclo de violência doméstica se mostra constante, como se, para ele, o marido, fosse possível diminuir o ciúme através das pancadas que desfere no corpo da esposa. Não são poucas vezes que, sem motivo aparente, procura machucar a mulher que diz amar.

(...) eu contava a mim mesma sobre o sangue. Na pia. Gotejava do nariz de Amalia em um fluxo denso, a princípio vermelho, depois clareando em contato com a água da torneira. Também descia ao longo do braço dela, até o cotovelo. Ela tentava estancá-lo com a mão, mas escorria pela palma e deixava rastros vermelhos como arranhões. Não era sangue inocente. Para meu pai, nada de Amalia jamais parecera inocente.


Como resposta ao horror (Nos sons que eu articulava de forma desconfortável havia o eco das brigas violentas entre Amalia e meu pai, entre meu pai e os parentes dela, entre ela e os parentes do meu pai.), Delia relata que os pais se separaram – embora o marido não tenha aceitado com naturalidade essa decisão. Amália e as três filhas foram expulsas de casa, sem nenhum direito ou dinheiro.

Para Delia, o tempo se alimenta de lembranças – que surgem, a cada instante, com força inexplicável, inadiável, irreversível. Essa forma de reconstruir o passado permite uma nova perspectiva de observação: Gostei inesperadamente, com surpresa, daquela mulher que, de alguma maneira, tinha inventado sua história até o fim, brincando por conta própria com tecidos vazios. Imaginei que ela não tivesse morrido insatisfeita e suspirei com inesperada satisfação. Também permite uma avalanche de recordações desagradáveis. Reencontrar o pai significa vivenciar – mais uma vez – o quanto as relações paterno-filiais estão centralizadas em bases antagônicas.

– Por que você não foi ao enterro?

– Quando alguém morre, morre.

– Devia ter ido.

– Você irá ao meu?

Pensei por um instante e respondi:

– Não.

As grandes bolsas embaixo dos olhos dele ficaram vermelhas.

– Você não irá porque vou morrer depois de você – murmurou ele.

Depois, sem que eu conseguisse prever, me deu um murro.

Recebi o golpe no ombro esquerdo e tive dificuldade em controlar a parte de mim aniquilada por aquele gesto. A dor física, por sua vez, não me pareceu grande coisa.

– Você é uma vagabunda igual à sua mãe – disse, ofegante, e se agarrou à cadeira para não cair. – Vocês me deixaram aqui como um bicho.”


A ficção de Elena Ferrante não comporta multidões. A ação narrativa está concentrada nos múltiplos desdobramentos da trama, evitando personagens fortes, desses que roubam a cena. Somente à narradora é permitido o protagonismo. Por isso, as figuras do pai, de Filippo (irmão de Amalia) e Antonio (amigo de infância de Delia e filho de Caserta) são patéticas. Eles somente aparecem no texto para ajudar no esclarecimento de vários detalhes do enredo.

Um Amor Incômodo lembra – da maneira mais agressiva possível – que algumas relações afetivas são constituídas de ressentimento, violência e ciúme. Por isso mesmo, nunca terminam bem. Nesse sentido, as cenas finais, onde as fantasias são substituídas pela realidade, mostram o quanto o ser humano é perverso.   

Nápoles

A versão cinematográfica, L'Amore Molesto, foi dirigida por Mario Martone, em 1995. 


TRECHO ESCOLHIDO


O que me freou (foi) aquela expressão: companheiro de brincadeiras. Que brincadeiras? Eu fazia certas brincadeiras com ele só para ver se eu sabia brincar da mesma maneira que, na minha imaginação, Amália brincava secretamente. Minha mãe pedalava o dia todo na Singer como uma ciclista em fuga. Em casa, vivia submissa e esquiva, escondendo os cabelos, as echarpes coloridas, as roupas. Mas eu suspeitava, exatamente como meu pai, que fora de casa ela ria de outra maneira, respirava de outra maneira, orquestrava os movimentos do corpo para deixar todos com os olhos arregalados. Virava a esquina e entrava na loja do avô de Antonio. Deslizava em volta do balcão, comia doces e amêndoas açucaradas, ziguezagueava sem se sujar entre balcões e formas. Depois chegava Caserta, abria a portinha de ferro, e eles desciam juntos para o porão. Ali minha mãe soltava os longuíssimos cabelos negros, e aquele movimento brusco enchia de centelhas o ar escuro que cheirava a terra e mofo. Então os dois se deitavam no chão, de bruços, e se arrastavam, rindo. O porão, na verdade, estendia-se como um espaço comprido e baixo. Só era possível avançar de quatro, entre restos de madeira e ferro, caixas e mais caixas cheias de velhas garrafas de molho de tomate, hálitos de morcegos e ruídos de ratos. Caserta e minha mãe se arrastavam, vigiando as grandes janelas de luz branca que se abriam a intervalos fixos à esquerda deles. Eram respiradouros atravessados por nove barras e gradeados por uma retícula que impedia a passagem dos ratos. De fora, as crianças olhavam para a escuridão e as poças de luz, imprimindo no nariz e na testa a marca da grade. Eles, por sua vez, lá de dentro, as vigiavam para ter certeza de que não estavam sendo vistos. Bem escondidos nas áreas mais escuras, tocavam reciprocamente entre as pernas um do outro. Eu, enquanto isso, me distraía para não chorar e, como o avô de Antonio não esboçava nenhuma proibição, mas esperava vingar-se de Amalia deixando que eu morresse de indigestão, me entupia de caramelos, de alcaçuz e de creme raspado do fundo da tigela no qual era fabricado. 

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