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segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

ASSASSINATO NO EXPRESSO DO ORIENTE



Chronos sempre foi um deus impiedoso. Ele se vinga dos mortais através das lembranças – que são recorrentes. Simultaneamente, com a ajuda de Mnemosine, manipula os fatos. Tudo o que (não) aconteceu fica envolto em névoa. A imaginação costuma se manifestar nesses instantes e, por conta de algumas “liberdades poéticas”, torna tudo mais saboroso, menos brutal.    

Em um tempo impreciso, quando os romances policiais tinham importância, ou melhor, mais importância, ler Agatha Christie (1890 – 1976) ajudava a compor um perfil social. Não era aquilo tudo, mas dava para o gasto. Os homens da minha geração (quer dizer, quase todos), junto com centenas de gibis e alguns “catecismos” (Carlos Zéfiro), tinham vários exemplares das narrativas de A Gata Triste (que era como muitos a chamavam). Eram livros perfeitos para dar de presente em festas de aniversário. Salvo engano, ganhei exemplares de O Caso dos Dez Negrinhos (que uma edição politicamente correta recente transformou em E Não Sobrou Nenhum), Um Corpo na Biblioteca, Morte no Nilo, Os Crimes ABC, além de vários outros títulos.

Mais tarde, bem mais tarde, nessa aventura que envolve a leitura, descobri que O Assassinato de Roger Ackroyd, escrito em 1926, é um texto de suma importância para a teoria literária. Ao permitir que o assassino seja o narrador, a brincadeira de gato e rato (descobrir/esconder quem praticou o crime) se transforma: em lugar de ser apenas uma charada complicada, o enredo se concentra em esclarecer a motivação. Essa mudança de perspectiva (do banal para o psicológico) foi incorporada rapidamente por outros escritores (de gêneros narrativos diferentes) e forneceu um novo fôlego ao romance contemporâneo.

Naquele tempo de adolescente sempre tinha um bobalhão que desdenhava a rainha dos mistérios e sacava do bolso um Raymond Chandler ou, em caso do sujeito ser um pedante irrecuperável, um daqueles volumes de mistérios de Ellery Queen. Fazia parte da festa. E a gente – sem a mínima mágoa – pedia, com educação, empréstimo. Que, generosamente, era concedido. Mas, nem sempre.  

Todas essas histórias, que estavam presas na escuridão da memória, vieram à tona porque fui ao cinema ver a mais nova versão de Assassinato no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express. Dir. Kenneth Branagh, 2017). No elenco estão, entre outros, Kenneth Branagh, Johnny Depp, Michelle Pfeiffer, Penélope Cruz, Josh Gad, Derek Jacobi, Willen Dafoe, Daisy Ridley, Tom Bateman e Judy Dench. Sintomaticamente, a versão anterior (Murder on the Orient Express. Dir. Sidney Lumet, 1974) também está repleta de “estrelas”: Albert Finney, Lauren Bacall, Anthony Perkins, Jacqueline Bisset, Jean-Pierre Cassel, Sean Connery, John Gielgud, Vanessa Redgrave,... E antes que passe batido, entre as muitas versões que teve o livro, cabe mencionar Murder on the Oriente Express, feita para a televisão, em 2001, com Alfred Molina, Meredith Baxter, Leslie Caron, Amira Casar, Tasha de Vasconcelos, Amira Casar, David Hunt, Adam James e outros.

Na nova adaptação, o elenco identifica o primeiro ruído. O espectador fica siderado com tantas figuras conhecidas que se esquece de que o grande entrave no diálogo que a literatura trava com o cinema é a ausência de espaço para respirar. Filmes podem ser sintetizados em uma fórmula bastante simples: uma serie de ações que vão preenchendo a imaginação de forma ininterrupta. O desfecho (quase) sempre tem característica de “gran finale”, de apoteose. O espectador (muitas vezes) fica atordoado. Leva um tempo para que o fôlego volte ao normal. E isso significa que as discussões críticas sempre ocorrem na fase post-mortem. Somente os cinéfilos mais fervorosos são capazes de parar a projeção para fazer algum tipo de análise (e isso, evidentemente, não ocorre nas salas comerciais de cinema). A leitura, trilhando sentido oposto, pode ser interrompida a qualquer instante – o tempo não está relacionado com o interesse do leitor. Em alguns casos a reflexão melhora com essas pausas anárquicas.

(Evidentemente, esse raciocínio não pode ser considerado como definitivo ou exemplar. Ao contrário, está repleto de “furos”. E não serei eu quem vai enumerá-los.) 

Em Assassinato no Expresso do Oriente, Kenneth Branagh forneceu uma estatura shakespeariana para Hercule Poirot. O tom de voz, a (im)postura nobiliárquica, o bigode exótico, o figurino adequado, a leitura de romances franceses – a soma dos detalhes ampliando o mito. Infelizmente, o detetive belga não possui o necessário physic du role para tanto esforço. E esse é o segundo ruído. O cinema não aceita heróis banais. Além da inteligência aguçada, precisam ter músculos. Sem vencer uma boa luta corporal, o herói fica desmoralizado – e o produtor do espetáculo começa a imaginar que alguém pedirá a devolução do dinheiro gasto com o ingresso. Em suma, o Poirot da literatura não é o Poirot do cinema.   

Ao acreditar que o enredo é de conhecimento geral (um homem desagradável é morto em um ambiente de difícil acesso) e que o espectador está ali, com os olhos fixos na tela, para ver uma representação de grande qualidade, Branagh aposta no maneirismo. E a grande mística do cinema, a ilusão, evapora. Ou seja, a empatia com o público diminui na medida em que o que a atmosfera deixa de ser realista para se tornar artificial. Teatro filmado não é a “sétima arte” – por maiores que sejam as interpretações dramáticas do elenco.

O roteiro do filme espelha mais confusão. Os fatos narrativos não estão colocados em uma ordem inteligível, ninguém entende o que está acontecendo e a câmera gasta frames revelando a disposição burguesa dos pratos no vagão-restaurante. O desastre ferroviário não reflete a redoma que a natureza produziu naquelas circunstâncias – a interrupção da viagem equivale a uma janela temporal, que permite a solução do crime. Os personagens secundários são mera figuração – “escadas” para que Branagh (Poirot) se projete e domine a cena. Por fim, o método analítico do detetive que deveria ser dedutivo, estabelecendo a conexão racional entre cada uma de suas descobertas, lembra o coelho que o mágico desastrado quase deixa fugir da cartola. A solução do mistério surge por necessidade de encerrar o espetáculo – antes que o vexame se torne maior. O espectador não é convidado a acompanhar o raciocínio, não participa da trama – e, claro, não se envolve.

Assassinato no Expresso do Oriente está longe de ser um filme razoável. E não é sequer um bom entretenimento. Lembrando aquele menino que adorava ir na matinèe de domingo no Cine Tamoio para ver faroestes, mistérios, gladiadores e outras bobagens, sai da sala de cinema frustrado. 
    

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Tamoio, Marrocos, Marajoara e Avenida.....tempos que não voltam mais.

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  3. filme tinha tudo para ser uma trama policial incrível, mas o roteiro insosso faz com que o longa pareça uma aventura genérica que se estende por duas horas sem despertar nenhuma emoção no público. Amei o trabalho de Kenneth Branagh no filme, lembro dos seus papeis iniciais, em comparação com os seus filmes atuais, e vejo muita evolução, mostra personagens com maior seguridade e que enchem de emoções ao expectador. Desfrutei muito sua atuação neste filme: Dunkirk, um melhores filmes de ação do 2018 sem dúvida, no filme ele cuida todos os detalhes e como resultado é uma grande produção e muito bom elenco.

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