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terça-feira, 30 de janeiro de 2018

A ILHA DO TESOURO




Os reencontros são situações que possibilitam (com algumas dificuldades) voltar o olhar para o passado cada vez mais distante e (se é que isso é possível) recuperar lembranças que estavam destinadas ao esquecimento. O primeiro contato com A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, aconteceu quando eu tinha uns oito ou nove anos. Faz tempo! Possivelmente reli o livro alguns anos mais tarde, na coleção terra-mar-e-ar, mas não tenho certeza.

Nos últimos anos procurei por uma edição com o texto integral. Estranhamente, não encontrei. A Ilha do Tesouro se tornou um livro raro. Nas livrarias virtuais há algumas edições adaptadas. Nos sebos físicos, nenhuma notícia. Provavelmente a modernidade não combina com esse tipo de literatura romântica. Quem é que quer saber das peripécias de um garoto que vai em busca de um tesouro quando pode se distrair com videogames ou “blockbusters” cinematográficos?
Robert Louis Stevenson (1850-1894)
      
Inesperadamente, a cerca de um mês, encontrei um exemplar. Edição portuguesa de 2011, capa dura, ilustrações de Louis Rhead e tradução de Fernanda Palmeirim. Li (ou melhor, reli) em dois dias. Foi bom. Muito bom. Inclusive naquilo que causa estranheza. A indiscutível prova de que estamos separados de Portugal pela língua aparece no texto através de palavras como lugre, pequeno-almoço, charneca, garrido, moitão, linguareiro, fixe, relvado ou de expressões como passar alguém pela quilha ou fazer aguada. Em todos esses casos (e em vários outros) recorri ao(s) dicionário(s). Conhecer uma meia dúzia de vocábulos nunca fez mal a ninguém.

Em relação ao texto, muitas surpresas. No meu imaginário, a história era outra. E muito diferente. Com mais peripécias, com mais heroísmo, com menos descrições. A imaginação introduz no enredo cenas que não estão lá. Long John Silver (e o seu papagaio, Capitão Flint) parecia ser mais aterrorizante, mais cruel. Não o é. Trata-se de um sujeito ambicioso, mas que também consegue calcular suas chances quando a balança do destino começa a pender para o outro lado. E a sua fuga nas últimas páginas revela – por vias travessas – o quanto do mal costuma ficar impune (principalmente nos casos em que há algum tipo de “arrependimento” dos pecados).

O texto está dividido em seis partes (trinta e quatro capítulos). O narrador geral da história, Jim Hawkins, relembra, a pedido de Trelawney e de Livesey, alguns dos episódios da grande aventura que eles viveram juntos. Do ponto de vista estrutural, existe uma ruptura nos capítulos XVI, XVII e XVIII, quando o médico Livesey assume o papel de narrador, relatando fatos que estão fora do alcance de Hawkins. No mais, trata-se de uma narrativa com começo, meio e fim – nessa ordem – e um narrador (quase) onisciente e (quase) onipresente.       

Os acontecimentos iniciam de forma despretensiosa. O pai de Jim Hawkins é proprietário de uma estalagem, Admiral Benbow, na costa sudoeste da Inglaterra, provavelmente perto de Bristol. Um dos hóspedes, Bill Bones, passa os dias olhando para o mar através de um velho telescópio de latão. Depois que o dia escurece, ele volta à estalagem e bebe todo o rum que aguenta. Entre um gole e outro, atormenta os hóspedes e os visitantes. O único que não se sente amedrontado por esse encrenqueiro é o médico – que o adverte sobre os malefícios do alcoolismo. Em determinado momento, aparecem na estalagem alguns “amigos” de Bill. Essas visitas somadas com a saúde debilitada do marinheiro resultam em um ataque apoplético.

O que se segue é parte divertida, com direito a todos os clichês da literatura de aventuras: mapa do tesouro, viagem a bordo do Hispaniola, a tripulação se transformando em piratas, perigos inimagináveis, tiroteios, doenças tropicais, uma confusão atrás da outra, tudo em um andamento vertiginoso – para não permitir que o ritmo se esfarele.             

Parte do prazer do texto está em perceber as mudanças comportamentais de Hawkins (hawk, falcão em inglês). O adolescente que participa da caça ao tesouro amadurece. Tornou-se outro. E é esse outro que aceita colocar no papel os acontecimentos que vivenciou. Então, quando descreve algumas de suas ações, o faz com senso crítico, condenando a impetuosidade, a falta de razão prática, o correr perigo desnecessariamente. Ao mesmo tempo, exalta a coragem e o senso de honra. Essa ambiguidade permite uma imagem humana para um personagem de papel. Em relação à fragilidade humana, há outra questão axial: a ausência de limites. Não se trata de um elemento psicológico relacionado com o fato dele ser órfão de pai e negar a autoridade. O problema é outro. A vontade de ser herói – apesar de não saber exatamente como vai conquistar esse galardão – o torna egoísta. As decisões mais importantes da narrativa são tomadas isoladamente, sem consulta prévia aos demais participantes da jornada, sem a mínima compreensão do que está afetando aos outros.  

Evidentemente, tudo termina bem (apesar dos vários mortos). O tesouro é encontrado, os bandidos são derrotados e as páginas finais estão encharcadas de um moralismo cínico – que perdoa o roubo perpetuado por Long John Silver e condena o desapego econômico de Ben Gunn. Deixando de lado esses senões, o que importa é que, como todo clássico, o livro escrito por Robert Louis Stevenson está repleto de tesouros – e é através da leitura que os encontramos.


TRECHO ESCOLHIDO


– Rapazes – declarou, – tivemos um dia esgotador, e está tudo cansado e mal disposto. Uma volta por terra não faz mal a ninguém, os escaleres ainda estão na água, podem pegar nos grandes e quem lhe apetecer pode passar a tarde em terra. Eu darei um tiro de chamada meia hora antes do pôr-do-sol. 

 

Acho que aqueles insensatos pensaram que davam logo com as canelas no tesouro mal desembarcassem, porque num instante lhes passaram os amuos, e soltaram um coro de vivas que ecoou ao longe nos montes e fez de novo levantar a passarada no ancoradouro.

 

O capitão era suficientemente esperto para ficar ali a atrapalhá-los. Num momento, desapareceu de vista, deixando o Silver tratar do grupo, e acho que ainda bem que o fez. SE tivesse ficado no tombadilho, não poderia fingir que não entendia a situação. Era claro como água. Quem comandava era o Silver, e mesmo assim parecia difícil que não se voltassem também contra ele. Os homens honestos – e em breve veria que ainda os havia – deviam ser muito estúpidos. Ou, melhor dizendo, suponho que a verdade era esta: que estavam todos neutralizados pelo exemplo dos seus chefes – mas uns em maior grau que outros; e uns poucos, sendo já de si boas pessoas, não podiam ser recrutados nem arrastados mais longe. Uma coisa é dar-se ao ócio e à cobardia, e outra muito diferente é assaltar um navio e matar uma série de pessoas inocentes. 

 

Por fim, o grupo ficou formado. Ficavam seis homens a bordo, e os outros treze, incluindo o Silver, dirigiam-se para os escaleres. Foi nessa altura que me veio à cabeça a primeira das ideias loucas que tanto contribuíram para nos salvar as vidas. Se o Silver deixava seis homens, era evidente que o nosso grupo não podia tomar e defender o navio; e como só ficavam seis, também se tornava claro que o grupo do camarote não ia precisar da minha ajuda. E então lembrei-me de também ir à terra. Num ápice, saltei a amurada e enrolei-me no paneiro da proa do barco mais próximo, quase no mesmo instante em que ele largou para a ilha. Ninguém deu por mim a não ser o remador da frente, que perguntou:

 

– És tu, Jim? Vê lá se te abaixas. 

 

Mas o Silver, no outro escaler, virou-se rapidamente para perguntar seu ia ali, e a partir dessa altura comecei a arrepender-me do que tinha feito.

 

Remaram numa corrida para a praia, mas o barco onde eu ia, tendo algum avanço, e sendo ao mesmo tempo o mais leve e o mais bem manejado, lançou-se muito à frente do adversário, e assim que meteu a proa nas árvores da margem, saltei para um ramo e no mesmo balanço atirei-me para os arbustos mais próximos, ao passo que o Silver e os outros ainda vinham uns cem metros atrás. 

 

– Jim, Jim! – ouvi-o chamar. Mas, como podem imaginar, não lhe liguei nenhuma. Saltando, baixando-me e rompendo caminho, corri e corri sempre a direito, até não poder mais.  

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