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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

A MÃO ESQUERDA DA ESCURIDÃO



Uma das grandes vantagens da ficção científica está no uso proposital de metáforas para estabelecer discussões sobre temas atemporais. Evidentemente, cabe ao leitor (e somente a ele) decidir se se concentra no escapismo da distopia (e do entretenimento) ou se conecta intelectualmente o texto com a realidade concreta. Um dos melhores exemplos dessa proposição encontra-se em A Mão Esquerda da Escuridão, da estadunidense Ursula K(roeber) Le Guin (1929 – 2018).

De forma muito superficial, o enredo do livro pode ser assim descrito: Genly Ai foi enviado ao planeta Gethen em uma missão diplomática: integrar as nações Karhide, Orgoreyn, Sirth, Arquipélago e Perunter a um ordenamento galáctico chamado Ekumen. Como a diplomacia é a continuação da guerra por outros meios e a ideia de participarem de um conglomerado de 84 planetas não parece ser interessante, a recepção ao alienígena (neste caso, um humano!) está envolta em desconfiança e em medo. As conversações, em Erhenrang (capital de Karhide), se caracterizam por protelações, indecisões, empecilhos. A demora por uma solução faz parte da estratégia política. A situação se agrava com a troca de governo: o primeiro-ministro, Theren Harth rem ir Estraven, é deposto. Em seu lugar assume Harge rem ir Tibe, que é contrário a qualquer acordo com o mundo exterior. Sem muitas alternativas, Genly Ai viaja para Mishnory, capital de Orgoreyn, na esperança de ter melhor sorte. A diferença básica entre um país e outro está na forma com que recepcionam Genly Ai. Enquanto em Karhide há curiosidade e protelação; em Orgareyn, o estrangeiro encontra dissimulação e violência. O ponto alto do texto surge quando Theren Harth rem ir Estravem resgata Genly Ai de uma espécie de campo de trabalhos forçados. O que se segue é uma saga polar digna dos melhores romances de aventuras de Jack London.     

A Mão Esquerda da Escuridão se concentra em três temas básicos da atualidade: as relações políticas, as discussões de gênero e a amizade.  

No primeiro caso, o destaque está nos labirintos do poder – lugares repletos de armadilhas, traições e muita ingenuidade. O contraste entre Karhide e Orgoreyn mostra que há grandes diferenças entre um governo autoritário e um governo colegiado. Isso leva a crer que a democracia (como nós, humanos, a entendemos) estaria mais bem representada em um sistema onde o poder central foi pulverizado pelos interesses dos 33 dirigentes. Isso também significa que os diversos segmentos sociais estão – em tese – representados. Evidentemente, na prática a teoria é outra. Neste caso, que não pode ser utilizado como parâmetro para qualquer discussão política, o rei Argaven I (apesar de estar envolto na loucura – ou talvez por isso mesmo) se mostra mais tolerante e racional do que os dirigentes de Orgoreyn (que se deixam envolver pela disputa diária do poder e perdem os parâmetros que estabelecem as inúmeras diferenças entre o razoável e a tirania). Impossível deixar de perceber que a prisão em que Genly Ai foi encarcerado se assemelha aos campos de concentração nazistas.             

O segundo tema está sedimentado em uma característica muito peculiar dos habitantes do planeta: eles são hermafroditas andróginos e, durante cerca de 80% do tempo, assexuados. No planeta Gethen não existe o dualismo masculino/feminino, homem/mulher. Fisiologicamente, todos os indivíduos são iguais. O kemmer (período de procriação) é que desperta a sexualidade e determina quem vai ser fecundado. Isso está conectado com algum tipo de fenômeno biológico que não pode ser controlado. Se dois indivíduos estiverem envolvidos em uma relação estável de kemmering, eles constituem um núcleo familiar (desde que não sejam irmãos). Se não houver afetos, a prática social recomenda a utilização de uma das muitas casas legalizadas de kemmer, onde o relacionamento sexual é impessoal e destina-se apenas à satisfação recreativa.

Em Karhide e Orgoreyn, são considerados “pervertidos” todos os indivíduos que não controlam a sexualidade (e que, portanto, estão em kemmer constante).  Nesse sentido, o órgão sexual externo de Genly Ai constitui uma anomalia e causa estranheza. Sintomaticamente, durante sua estada no planeta, ele praticou o mais absoluto celibatarismo.

O terceiro tema, a amizade, não é fácil de ser definido. A ligação afetiva entre o alienígena Genly e o karhideano Theren está expressa na ambiguidade – turvada por suave névoa erótica. Cada um dos momentos que os dois indivíduos compartilham equivale a algum tipo de enlevo. Mas eles nunca se tocam, nunca se aproximam fisicamente – exceto em casos de absoluta necessidade. Preferem disfarçar o jogo de atração e repulsa que os envolvem. Quando Theren entra em kemmer, a luta pela sobrevivência física dos dois está em um estágio tão envolvente que a situação se atenua e o possível envolvimento sexual deixa de existir. Talvez seja esse momento – quando surgem outras questões menos embaraçantes – que solidifica a amizade. Quase ao final do livro, Genly declara que Theren se assemelha a uma sombra na neve. Ele está sugerindo que a uniformidade não corresponde ao anseio por um mundo plural, diversificado, repleto de alternativas. É estranho como a luz do dia não é suficiente. Precisamos das sombras para caminhar, filosofa. Provavelmente quer dizer que o exercício da amizade exige elementos complementares, desiguais, assimétricos – e que parte da alegria decorre da presença do Outro, daquele que é tão diferente e tão necessário.

Todos esses procederes sociais, políticos e sexuais, em Karhide e Orgoreyn, estão escorados em um tipo especial de etiqueta (a pequena ética). O Shifgrethor (um conjunto de regras de comportamento que estabelece diversos procederes: prestígio, aparência, posição, orgulho, princípio da autoridade social, etc.) impede ou alicerça algumas ações, impondo formas de procedimentos coletivos. Qualquer infração a esse código resulta em demérito e na perda da credibilidade e da autoridade no mundo social.

Do ponto de vista estrutural, A Mão Esquerda da Escuridão está dividido em vinte capítulos, com diversos narradores. Os relatos de Genly Ai (misturando descrições burocráticas e lembrança dos acontecimentos) e os registros diários de Theren Harth rem ir Estraven constituem a parte mais significativa. No geral, esses fragmentos, enunciados por vozes bastante desiguais, compõem a tessitura narrativa, dando-lhe forma e sentido.

Muitos leitores consideram A Mão Esquerda da Escuridão, publicado pela primeira vez em 1969, como um dos dez melhores livros de ficção científica da história da literatura.  

Ursula K(roeber) Le Guin (1929 – 2018).

 P.S.1) O título do livro remete a um poema, A Canção de Tormer, e que se encontra na página 224 (edição da Aleph): A luz é a mão esquerda da escuridão / E a escuridão, a mão direita da luz. / Dois são um, vida e morte, unidas / Como amantes no kemmer, / Como mãos entrelaçadas, / Como o caminho e a chegada.

P.S.2) Em 1995, o Lifeline Theatre, de Chicago, apresentou uma adaptação de A Mão Esquerda da Escuridão. Em 2005, a BBC também fez uma incursão ao planeta Gethen (dois episódios com duração de duas horas).  

P.S.3) Depois da adolescência, por inúmeras razões, deixei de lado a ficção científica. Quer dizer, não de todo, pois não há como ignorar livros básicos com Fahrenheit 451 (Ray Bradbury), Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley), 1984 (George Orwell), etc. O que importa, neste registro, é dizer que, no início de 2011 (ou talvez antes), depois de assistir (outra vez!) o filme Clube de Leitura Jane Austen (The Jane Austen Book Club. Dir. Robin Swicord, 2007), baseado no romance escrito por Karen Joy Fowler (a edição brasileira é de 2017!!!), retomei o caminho. No filme, dois dos personagens (Grigg e Jocelyn) se envolvem em um grande tumulto amoroso. Em um determinado momento, ele sugere que ela leia alguns livros de ficção científica. Um deles é A Mão Esquerda da Escuridão. Alguns dias depois, influenciado por essa indicação, retirei o meu exemplar da estante e comecei a leitura. Atualmente, estou na terceira releitura. Provavelmente não será a última. 

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