Páginas

segunda-feira, 19 de março de 2018

MANUAL DE DEMISSÃO


Algumas tragédias – descontado o oximoro – são muito divertidas. Evidentemente, nesse tipo de circunstância, o exercício literário (transformar o limão em limonada) deve utilizar um tom menos dramático e, se possível, bem-humorado. O segredo está aí.

O romance Manual de Demissão, de Julia Wähmann, cumpre com esse objetivo. Ao se concentrar em um episódio cada vez mais comum nas relações contemporâneas de trabalho, o desemprego, J. (a narradora e protagonista) realiza – de forma minuciosa – um exame do corpo de delito. No seu relato, a “crise” (viga-mestra de todas as desculpas administrativas) serve de escudo para o sucateamento das relações laborais. Depois da inevitável conversa com alguém do Departamento Pessoal (sempre uma pessoa calma e simpática), depois de cumprir com todos os rituais referentes ao desligamento da empresa, sobra a ausência de chão embaixo dos pés. Nada restabelece o equilíbrio. Em alguns casos, e não são poucos, a compensação surge como variável da Síndrome de Estocolmo: (...) saudades da vida regrada, com ordens, de um chefe a quem me reportar, cercada de colegas da minha categoria que compartilhavam não só as cadeiras giratórias baratas e os ácaros, mas também um piso salarial e um ticket alimentação que nos permitia comer verduras cheias de agrotóxicos e frangos cheios de hormônios nos restaurantes xexelentos do Centro da cidade.

Não precisando mais ir para a empresa pela manhã, restam alguns obstáculos quase intransponíveis. A visita ao sindicato, para acertar os termos da demissão, caracteriza uma experiência antropológica digna de pesquisa de campo com aborígenes da Polinésia. Estranhamento total com usos e costumes. Evidentemente, o pior ainda está para vir. O descompasso se torna uma brincadeira infantojuvenil no momento de ir ao banco receber o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) ou o seguro-desemprego. As dificuldades praticamente brotam do ar. As filas são imensas, o tempo de espera exige paciência, o atendimento é deficitário. O melhor remédio para suportar essas provações é... Um livro do Roberto Bolaño. Aquele com o maior número de páginas.

Invariavelmente, o atendimento acontece em horário próximo ao término do expediente. Além disso, o funcionário percebe que alguma informação documental está errada. Voltar no dia seguinte é a alternativa – quando a cena se repete.  A exceção a esse episódio kafkaniano ocorre quando a loucura ameaça dar tchauzinho para o distinto público: J. abriu a torneira lacrimal e ameaçou o inicio de um processo de desidratação O funcionário, assustado com esse recurso patético, a ajudou a solucionar o problema. Uma pequena vitória em uma guerra perdida.

Para muitos dos colegas de demissão, o aeroporto se transformou na porta de saída. Saída de emergência, cenário de aventuras, histórias de exílios. Portugal à vista, poderia ter dito o comandante do avião repleto de brasileiros desiludidos com a situação econômica, política e social do país: Era incrível, o mundo parecia uma narrativa do Saramago em que todos são acometidos por um mal súbito, sem aviso prévio, sem explicação, e, diante do absurdo da situação, partem para Lisboa, que já tinha mais gente conhecida que o meu próprio bairro.

Para aqueles que ficaram em terras brasilis, sobrou, em quantidade cavalar, angústia e depressão. A ajuda anestésica de vários comprimidos de Dormonid (adquiridos no mercado negro dos remédios) se impõe.  Nos momentos mais suaves, cervejas e vinhos também contribuem para a construção de uma atmosfera lúdica e menos assustadora.

Ah, para não dizer que não se falou de flores, o bundão do namorado de J. também atravessou o oceano, casou, teve filho e foi feliz. O cara construiu uma história de contos de fada (que J. acompanhou, on line, como parte do ritual de autoflagelação).  

Como termina essa bagunça? Não termina. Não há possibilidade de terminar. Cada demissão transforma o indivíduo em ruína. O estrago é irreparável. Não há possibilidades de reverter esse desastre. A vingança é um prato que se come frio, dizem. Mas, na história do mundo, seguimos sentados à mesa, em frente a travessas fumegantes, a esperar.

Manual de demissão foi construído como um imenso monólogo, a escassa comunicação entre os personagens está incorporada nos blocos narrativos. O texto, ágil e de fácil leitura, está dividido em 23 capítulos   cada uma das interrupções do discurso serve de pausa para que o leitor possa respirar e refletir sobre o que está sendo narrado. Todos os capítulo possuem título (ditados populares, clichês de autoajuda). Os personagens secundários (e que aparecem de maneira furtiva no texto) são designados por letras do alfabeto (A, B, C, D, E, F, G). A exceção é a narradora, J., que quebra a ordem alfabética.

Salve Manual de Demissão – texto ficcional imprescindível para quem quer se preparar para o futuro. Depois de algumas reformas no setor trabalhista, promovidas pelo governo vigente, o desemprego em massa deixou de ser uma hipótese remota e se transformou em ameaça diária. Acabou a diversão!


TRECHO ESCOLHIDO

 

O telefone tocou novamente, fui atender e não era o meu amor. Não mesmo, era a moça do Departamento Pessoal, e ali eu já sabia que, ao me levantar da cadeira azul giratória, barata e desconfortável, na qual sentei por nos, e dar os primeiros passos por um corredor azul meio mofado, o rapaz do Departamento de Informática se sentaria no meu lugar e bloquearia meu computador. Enquanto isso, eu estaria assinando os papéis de demissão, ouvindo, cada vez mais ao longe, a voz tensa da moça dizendo que não era nada pessoal, embora o nome do departamento deixasse certa dúvida, que a empresa, você sabe, é a crise, vinha passando por dificuldades, que meu trabalho era ótimo, certamente, mesmo que ela não soubesse exatamente o que eu fazia, e enquanto eu segurasse numa mão a caneta, na outra apertaria os pen drivers no bolso do casaco, só de nervoso, e para me certificar de que tudo estava ali, alguns arquivos pessoais e fotos que resgatei do computador que usei por anos. Àquela altura, cerca de duas da tarde, já uma leva de gente tinha ido embora carregando suas caixas de papelão antes do almoço e, portanto, as horas seguintes foram agonias de espera e de backups possibilitados pelos pen drives surrupiados das três ou quatro gavetas abarrotadas de papéis que eu jamais iria ver. Quando a moça terminasse a sua fala e me explicasse resumidamente o que eu deveria fazer – a primeira coisa, claro, era ir embora dali –, eu voltaria para a minha agora ex-mesa com a certeza de que não deixaria nada muito intimo no HD da empresa, ao mesmo tempo que desconfiaria do que poderia haver nos inúmeros papeis das tais três ou quatro gavetas, rascunhos de textos que não terminei, devaneios e rabiscos de reuniões em que a cafeína demorava a fazer efeito, setas, estrelas ou quadrados desenhados obsessivamente durante telefonemas que se estenderam para além do habitual, anotações dispersas de tarefas a cumprir. Talvez um esboço de uma declaração de amor – ou de guerra – feita numa tarde tediosa em que até vídeos de pandas falharam.  




Nenhum comentário:

Postar um comentário