Há quem acredite
que uma das mais significativas metáforas para caracterizar a família está na
expressão “moedor de carne”. As almas mais sensíveis consideram essa ideia uma
extravagância, alegando que o processo civilizatório nos afastou da barbárie. Não
é isso o que pensam nove entre dez estudiosos do tema, lembrando que o otimismo
higienizador ignora que a estrutura familiar está alicerçada na
violência (simbólica, imaginária, concreta).
O relacionamento
entre pais e filhos não foge da regra geral. A inveja, a luta pelo poder, o
complexo de Édipo, a mesquinharia – são incontáveis os motivos para que a
confusão se instaure diariamente.
Além disso, as demandas específicas de cada uma das partes (muitas vezes genuínas) raramente são atendidas na integralidade. A agressividade surge como uma resposta imediata para a ausência de satisfação.
Além disso, as demandas específicas de cada uma das partes (muitas vezes genuínas) raramente são atendidas na integralidade. A agressividade surge como uma resposta imediata para a ausência de satisfação.
Escrito com
fúria e obsessão, mágoa e coragem, Pai, Pai, de João Silvério Trevisan, está
além do depoimento autobiográfico. Manejando o bisturi literário, o escritor
esgaçou o tecido social e, na medida em que a razão superou a emoção, procurou
mostrar parte das vísceras do mundo doméstico. Essa visão têm a seu favor o desmascaramento do idealismo. Raramente a
família se transforma em sinônimo do paraíso.
Menino que não
se enquadrava no rótulo da masculinidade projetada pelo pai, em determinado
momento Trevisan imaginou que poderia escapar do horror familiar. Aos dez anos
de idade, apoiado pela mãe, ingressou em um seminário católico. Como era de se
prever, a tentativa foi infrutífera. No mínimo, trocou uma tortura por outra.
Os estudos religiosos estavam atrelados a uma série de regras severas – e que
tinham como objetivo controlar o corpo e a mente dos alunos. Não foi fácil se
adaptar a essa reclusão ordenada.
Além das
muralhas do seminário, assombrado pelas lembranças do pai alcoólatra e violento,
Trevisan percebe rapidamente que não basta se pretender órfão da paternidade. Isso é ilusão. A
ausência do afeto não abre espaço para qualquer coisa que não seja o afeto.
Simultânea aos problemas parentais, a explosão hormonal da adolescência. O corpo de outros
rapazes projetando o desejo. Esses impulsos, pouco aceitáveis em quem se propõe
a seguir a carreira sacerdotal, foram sublimados intelectualmente com leituras
e uma nova paixão, o cinema. Foi no cineclube que fundou no seminário que
Trevisan expandiu o horizonte e forneceu uma nova perspectiva para sua vida.
Depois de dez
anos vivendo a castração afetiva e intelectual, não foi possível adiar a decisão extrema: Trevisan abandonou o seminário. Romper
com as amarras do constructo religioso configura – naquele instante – um
caminho menos doloroso do que ficar aprisionado mentalmente no interdito.
Evidentemente, essa escolha, qualquer escolha, implica em enfrentar (e superar)
outras barreiras. O mundo fora da redoma eclesiástica se apresentou pouco
amistoso. As armadilhas se multiplicaram. E, nesse instante, surge outro trauma a superar: a morte da mãe.
Somando a
orfandade simbólica (pai) com a orfandade física (mãe), resta apenas a
fraternidade (com todos os seus traumas) para diminuir a solidão. A irmã e o
irmão mais novo passam a ser uma espécie de ligação entre a família biológica e
o passado em comum (conjunto de histórias que, a qualquer instante, pode se perder). Nesse
contexto, “inventar” novos pais não se mostra suficiente. A prótese jamais
substituirá integralmente o que se perdeu. A carência também não pode ser
superada através da paixão – que muitas vezes é transitória e traumática. O
vazio existencial costuma aumentar, jamais diminuir.
Que tipo de
batalha ainda é preciso para que eu seja herói?, pergunta Trevisan, quase ao
final do livro. Por maiores que sejam as tentativas, incluindo nesse pacote
centenas de sessões psicanalíticas e a inutilidade contemporânea da heroicidade, a resposta ainda se mostra inconclusa, visto que muitos indivíduos raramente conseguem superar os horrores espelhados na paternidade.
A figura física do pai desaparece, mas não morre. A imagem residual (e os seus
componentes míticos) continua a atormentar aqueles que, no tempo devido, não
enfrentaram os fantasmas que habitam a cela familiar.
A liberdade precisa ser construída com o sangue daquele que gerou quem quer se libertar. "Matar o pai", no sentido freudiano, significa ter estabilidade emocional para acionar a guilhotina. A culpa (essa interdição católica) jamais pode ser um impedimento.
Em uma outra rota de colisão, talvez tolerância e perdão sejam as palavras que faltam nos relacionamentos entre pais e filhos. De qualquer forma, se a vida é eterno aprendizado, poucos conseguem alcançar a sabedoria. Depois de cultivar anos de amargor, Trevisan descobre, por meio de um mecanismo onírico, que Naquele exato momento, compreendi que quem sofrera não fora eu, mas o pai dentro de mim. Percebi que eu precisava cuidar desse velho senhor, tão esquálido que parecia egresso de um campo de concentração. Seu pouco peso evidenciava a dimensão do desamparo nele encarnado. Acolhi meu pai nu e o abracei sem medo, com a convicção de que ele sempre precisou de mim, e eu nunca tinha me dado conta. Para que me acreditasse, afirmei repetidamente que o perdoava pelas dores do passado. Mas dessa vez tive certeza (daí a epifania) de algo que eu apenas supusera antes: meu pai tinha passado a vida numa infelicidade descomunal. Fizera outros sofrerem porque sofria muito, isso é tudo. Lamentavelmente, não é tudo. Talvez não seja nem uma fração mínima. E o entendimento, depois que uma das partes (por qualquer motivo) foi impedida de interagir, não redime a agressividade produzida no passado. Pais e filhos estão separados pelo tempo, pela experiência de vida e pela ausência de alguma forma de ajuste entre os diversos litígios que os separam. Esses obstáculos jamais serão rompidos – o que não impede, obviamente, que a parte sobrevivente projete algum ato de contrição.
A liberdade precisa ser construída com o sangue daquele que gerou quem quer se libertar. "Matar o pai", no sentido freudiano, significa ter estabilidade emocional para acionar a guilhotina. A culpa (essa interdição católica) jamais pode ser um impedimento.
Em uma outra rota de colisão, talvez tolerância e perdão sejam as palavras que faltam nos relacionamentos entre pais e filhos. De qualquer forma, se a vida é eterno aprendizado, poucos conseguem alcançar a sabedoria. Depois de cultivar anos de amargor, Trevisan descobre, por meio de um mecanismo onírico, que Naquele exato momento, compreendi que quem sofrera não fora eu, mas o pai dentro de mim. Percebi que eu precisava cuidar desse velho senhor, tão esquálido que parecia egresso de um campo de concentração. Seu pouco peso evidenciava a dimensão do desamparo nele encarnado. Acolhi meu pai nu e o abracei sem medo, com a convicção de que ele sempre precisou de mim, e eu nunca tinha me dado conta. Para que me acreditasse, afirmei repetidamente que o perdoava pelas dores do passado. Mas dessa vez tive certeza (daí a epifania) de algo que eu apenas supusera antes: meu pai tinha passado a vida numa infelicidade descomunal. Fizera outros sofrerem porque sofria muito, isso é tudo. Lamentavelmente, não é tudo. Talvez não seja nem uma fração mínima. E o entendimento, depois que uma das partes (por qualquer motivo) foi impedida de interagir, não redime a agressividade produzida no passado. Pais e filhos estão separados pelo tempo, pela experiência de vida e pela ausência de alguma forma de ajuste entre os diversos litígios que os separam. Esses obstáculos jamais serão rompidos – o que não impede, obviamente, que a parte sobrevivente projete algum ato de contrição.
Homossexual,
Trevisan não repetiu a experiência paterna. Preferiu ser filho de si mesmo.
Em determinado momento, consciente de que a paternidade produz vulnerabilidades, declara: Talvez o meu grande medo de exercer a função paterna seja
exatamente o medo de trair – resultado da experiência de ser traído, tantas
vezes. Mas implica também no medo de fracassar. É uma extenuante jornada essa
que começa na traição assumida, passa pelo perdão concedido e chega ao amor de
reparação. De tão difícil, essa talvez seja tarefa a ser cumprida numa próxima
vida, se isso pudesse existir.
Em efeito
especular, o escritor repete o discurso grandiloquente (e inócuo) de Brás Cubas, o
anti-herói machadiano: Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o
legado de nossa miséria. Para conseguir realizar – plenamente – essa
confissão, ele precisou de 253 páginas, divididas em dezenas de capítulos
curtos, que parecem ter sido escritos para ser publicados em folhetim. Faltou a
ironia da dedicatória: ao mestre, com carinho.
Pai, Pai é
livro de difícil digestão. A forma com que o tema (paternidade x filiação) foi tratado por Trevisan talvez afaste alguns leitores mais ou menos sensíveis. A crueldade (quando focaliza dramas pessoais que estão próximos) costuma ser negada – poucos indivíduos conseguem reconhecer as próprias vulnerabilidades.
Pai, Pai é livro forte e literatura de excelente qualidade.
Pai, Pai é livro forte e literatura de excelente qualidade.
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