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domingo, 11 de novembro de 2018

PAI, PAI


Há quem acredite que uma das mais significativas metáforas para caracterizar a família está na expressão “moedor de carne”. As almas mais sensíveis consideram essa ideia uma extravagância, alegando que o processo civilizatório nos afastou da barbárie. Não é isso o que pensam nove entre dez estudiosos do tema, lembrando que o otimismo higienizador ignora que a estrutura familiar está alicerçada na violência (simbólica, imaginária, concreta).   

O relacionamento entre pais e filhos não foge da regra geral. A inveja, a luta pelo poder, o complexo de Édipo, a mesquinharia – são incontáveis os motivos para que a confusão se instaure diariamente. 

Além disso, as demandas específicas de cada uma das partes (muitas vezes genuínas) raramente são atendidas na integralidade. A agressividade surge como uma resposta imediata para a ausência de satisfação. 

Escrito com fúria e obsessão, mágoa e coragem, Pai, Pai, de João Silvério Trevisan, está além do depoimento autobiográfico. Manejando o bisturi literário, o escritor esgaçou o tecido social e, na medida em que a razão superou a emoção, procurou mostrar parte das vísceras do mundo doméstico. Essa visão têm a seu favor o desmascaramento do idealismo. Raramente a família se transforma em sinônimo do paraíso.

Menino que não se enquadrava no rótulo da masculinidade projetada pelo pai, em determinado momento Trevisan imaginou que poderia escapar do horror familiar. Aos dez anos de idade, apoiado pela mãe, ingressou em um seminário católico. Como era de se prever, a tentativa foi infrutífera. No mínimo, trocou uma tortura por outra. Os estudos religiosos estavam atrelados a uma série de regras severas – e que tinham como objetivo controlar o corpo e a mente dos alunos. Não foi fácil se adaptar a essa reclusão ordenada.

Além das muralhas do seminário, assombrado pelas lembranças do pai alcoólatra e violento, Trevisan percebe rapidamente que não basta se pretender órfão da paternidade. Isso é ilusão. A ausência do afeto não abre espaço para qualquer coisa que não seja o afeto. 

Simultânea aos problemas parentais, a explosão hormonal da adolescência. O corpo de outros rapazes projetando o desejo. Esses impulsos, pouco aceitáveis em quem se propõe a seguir a carreira sacerdotal, foram sublimados intelectualmente com leituras e uma nova paixão, o cinema. Foi no cineclube que fundou no seminário que Trevisan expandiu o horizonte e forneceu uma nova perspectiva para sua vida.

Depois de dez anos vivendo a castração afetiva e intelectual, não foi possível adiar a decisão extrema: Trevisan abandonou o seminário. Romper com as amarras do constructo religioso configura – naquele instante – um caminho menos doloroso do que ficar aprisionado mentalmente no interdito. Evidentemente, essa escolha, qualquer escolha, implica em enfrentar (e superar) outras barreiras. O mundo fora da redoma eclesiástica se apresentou pouco amistoso. As armadilhas se multiplicaram. E, nesse instante, surge outro trauma a superar: a morte da mãe.

Somando a orfandade simbólica (pai) com a orfandade física (mãe), resta apenas a fraternidade (com todos os seus traumas) para diminuir a solidão. A irmã e o irmão mais novo passam a ser uma espécie de ligação entre a família biológica e o passado em comum (conjunto de histórias que, a qualquer instante, pode se perder). Nesse contexto, “inventar” novos pais não se mostra suficiente. A prótese jamais substituirá integralmente o que se perdeu. A carência também não pode ser superada através da paixão – que muitas vezes é transitória e traumática. O vazio existencial costuma aumentar, jamais diminuir.   
       
Que tipo de batalha ainda é preciso para que eu seja herói?, pergunta Trevisan, quase ao final do livro. Por maiores que sejam as tentativas, incluindo nesse pacote centenas de sessões psicanalíticas e a inutilidade contemporânea da heroicidade, a resposta ainda se mostra inconclusa, visto que muitos indivíduos raramente conseguem superar os horrores espelhados na paternidade. A figura física do pai desaparece, mas não morre. A imagem residual (e os seus componentes míticos) continua a atormentar aqueles que, no tempo devido, não enfrentaram os fantasmas que habitam a cela familiar. 

A liberdade precisa ser construída com o sangue daquele que gerou quem quer se libertar. "Matar o pai", no sentido freudiano, significa ter estabilidade emocional para acionar a guilhotina. A culpa (essa interdição católica) jamais pode ser um impedimento. 

Em uma outra rota de colisão, talvez tolerância e perdão sejam as palavras que faltam nos relacionamentos entre pais e filhos. De qualquer forma, se a vida é eterno aprendizado, poucos conseguem alcançar a sabedoria. Depois de cultivar anos de amargor, Trevisan descobre, por meio de um mecanismo onírico, que Naquele exato momento, compreendi que quem sofrera não fora eu, mas o pai dentro de mim. Percebi que eu precisava cuidar desse velho senhor, tão esquálido que parecia egresso de um campo de concentração. Seu pouco peso evidenciava a dimensão do desamparo nele encarnado. Acolhi meu pai nu e o abracei sem medo, com a convicção de que ele sempre precisou de mim, e eu nunca tinha me dado conta. Para que me acreditasse, afirmei repetidamente que o perdoava pelas dores do passado. Mas dessa vez tive certeza (daí a epifania) de algo que eu apenas supusera antes: meu pai tinha passado a vida numa infelicidade descomunal. Fizera outros sofrerem porque sofria muito, isso é tudo. Lamentavelmente, não é tudo. Talvez não seja nem uma fração mínima. E o entendimento, depois que uma das partes (por qualquer motivo) foi impedida de interagir, não redime a agressividade produzida no passado. Pais e filhos estão separados pelo tempo, pela experiência de vida e pela ausência de alguma forma de ajuste entre os diversos litígios que os separam. Esses obstáculos jamais serão rompidos  o que não impede, obviamente, que a parte sobrevivente projete algum ato de contrição.           

Homossexual, Trevisan não repetiu a experiência paterna. Preferiu ser filho de si mesmo. Em determinado momento, consciente de que a paternidade produz vulnerabilidades, declara: Talvez o meu grande medo de exercer a função paterna seja exatamente o medo de trair – resultado da experiência de ser traído, tantas vezes. Mas implica também no medo de fracassar. É uma extenuante jornada essa que começa na traição assumida, passa pelo perdão concedido e chega ao amor de reparação. De tão difícil, essa talvez seja tarefa a ser cumprida numa próxima vida, se isso pudesse existir.

Em efeito especular, o escritor repete o discurso grandiloquente (e inócuo) de Brás Cubas, o anti-herói machadiano: Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria. Para conseguir realizar – plenamente – essa confissão, ele precisou de 253 páginas, divididas em dezenas de capítulos curtos, que parecem ter sido escritos para ser publicados em folhetim. Faltou a ironia da dedicatória: ao mestre, com carinho.

Pai, Pai é livro de difícil digestão. A forma com que o tema (paternidade x filiação) foi tratado por Trevisan talvez afaste alguns leitores mais ou menos sensíveis. A crueldade (quando focaliza dramas pessoais que estão próximos) costuma ser negada – poucos indivíduos conseguem reconhecer as próprias vulnerabilidades.  

Pai, Pai é livro forte e literatura de excelente qualidade.   



TRECHO ESCOLHIDO

Quase todas as manhãs, quando vou passear com minha cachorra Nina na Praça Dom José Gaspar, ao lado de casa, encontro um grupo de moradores de rua alcoólatras. Alguns até me cumprimentam, em tom exageradamente eufórico. Têm idades variadas, mas raramente muito jovens, como é mais comum entre os drogados. Os alcoólatras se juntam numa roda, conversando com entusiasmo e alegria irresponsável ou cantando desafinado para matar o tempo da sua dor, enquanto passam a garrafa de pinga entre si, como um cachimbo da paz. O que mais me impressiona, no entanto, é um certo senso de solidariedade com que eles repartem algumas frutas semipodres, colocadas no centro da roda, sobre um jornal ao chão – talvez frutas ganhas de um distribuidor que todas as manhãs traz encomendas para os restaurantes do entorno. Mesmo a alegria exasperada não esconde o clima geral de melancolia, por sua resignação e falta de perspectiva, até quase o niilismo. Outro dia me peguei imaginando se meu pai não poderia acabar numa roda dessas. A lembrança talvez não seja casual. No meio do grupo, há um senhor de idade indefinida que teima em me cumprimentar me chamando de “pai”. Às vezes, exagera e grita para mim, quando passo: “Papai, papai”. Além de me desagradar, isso me intriga. Qual seria a imensa falta que ele sofre, até o ponto de ver um pai em alguém sem qualquer apelo paternal como eu – que desfilo com minha ferida quase impossível de esconder? Estranha sensação: de caçador de pai, tornar-se pai caçado. 


A verdade é que sempre me recusei a ser pai. No decorrer da vida, fugi da paternidade de todas as maneiras que pude. Desde a paternidade explícita – não tendo filhos – até o rechaço à ideia de ocupar eu mesmo o papel de herói ou mito. Inclusive a ideia de ser professor me causa estranheza. Não me acho vocacionado nem preparado para transmitir saber. Como Sócrates, não acredito em saber legítimo fora da experiência pessoal. Acho que tal ceticismo resulta do meu espanto ante a fragilidade de uma criança – que experimentei na pele. Eu não saberia educar um filho, tal o meu medo de errar, magoar, prejudicar. Às vezes, chega a me parecer insano que as pessoas coloquem filhos no mundo. É desumano o risco que se corre para educar uma criança até torna-la adulta, responsável e cidadã autônoma. O mais próximo que consegui chegar foi criar minha cachorra, uma airedale terrier malandra. Pratico com ela o que me é possível relativamente a ser pai. Mas me irrita ao extremo quando ouço alguém mencionando, mesmo com a melhor das intenções, que ela é minha filha. Não, não é. Nem por brincadeira. Se penso bem, insana será talvez a minha atitude. De um modo ou de outro, com gosto ou desgosto, o ato mesmo de envelhecer implica assumir a função paterna. Nesses momentos, estremeço. E tenho pena do meu pai.


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