Fobias são idiossincráticas. Há quem
entre em pânico diante de aranhas, palhaços e baratas. Há quem tenha medo de
escuro, choques elétricos e lugares com pouco espaço. Todos os indivíduos
possuem algum tipo de temor, normalmente identificado com situação traumática (antiga
ou recente) e que – por uma dessas maluquices que fazem os humanos se portarem
como humanos – volta à tona na presença daquilo que causa horror.
Na relação (imensa!) de coisas que me
causam aversão, a que mais me amedronta é perder livros. Sou um acumulador. Nunca
me preocupei em ter dinheiro na conta bancária ou em comprar carro ou imóvel.
Meu objeto do desejo sempre foi ter livros. Quanto mais, melhor. E isso, de
certa forma (mas não da forma certa), explica porque escolhi a literatura como
elemento norteador de minhas escolhas.
Paro diante das estantes (os livros envolvidos
pelo que Walter Benjamin chamou de suave tédio da ordem) e vejo aqueles que
li e aqueles que – eis o paradoxo – jamais lerei. Sinto um prazer que a outras pessoas
parece estranho, esquisito, pouco compreensível. A isso se acresce o fato de
que gosto mais da companhia das criaturas de papel do que das pessoas de
carne e osso. Quando falam de minha falta de sociabilidade, esboço um esgar de
canto de lábio e sigo em frente.
Outro dia, no rascunho de um artigo que
está sendo desenvolvido, citei um conto da Susan Sontag. Publicado no Brasil pela
Companhia das Letras, em formato de bolso, tem menos de 60 páginas. Ou seja, é um
livro fácil de desaparecer entre centenas de outros volumes. Fui procurá-lo.
Não estava onde deveria estar. Também estava ausente em vários lugares possíveis.
Defendo a tese de que os livros se movem
quando o leitor não está olhando. Não importa o cuidado organizacional, retirar
e recolocar no lugar certo, eles, os livros, adoram se esconder. E somente
reaparecem quando querem – e isso pode acontecer vários meses depois ou nunca!
Revirei prateleiras, movi dezenas,
centenas de volumes do lugar. Olhando para aquele mar de histórias, lamentei
não saber em que profundeza abissal estava o Assim Vivemos Agora. Como
nunca tive vocação para herói, adiei a busca, sentei no sofá, sequei o suor da
testa, tentei negar a forte dor nas costas e, para não perder a viagem,
amaldiçoei a humanidade.
Na tentativa de acalmar a ansiedade,
acessei a Estante Virtual. Na eventualidade de precisar adquirir uma cópia, fui
verificar a disponibilidade. Encontrei três exemplares. O primeiro, R$ 85,00
(mais R$ 6,53 de frete); o segundo, R$ 90,00 (mais R$ 8,05 de frete); o último,
R$ 130,00 (frete grátis!).
A mercantilização da literatura
acompanhou os avanços da tecnologia. Vinte anos atrás, os livros ficavam
esquecidos nas prateleiras obscuras de algum sebo mal localizado. Os
garimpeiros literários precisavam ter espírito de aventura para extrair do pó e
das traças as raridades que se encontravam escondidas entre exemplares de autoajuda
e romances açucarados. Quem leu John Dunning sabe o que isso significa. Com a
Internet, as listas dos acervos foram digitalizadas e a lei da oferta e da
procura se transformou em arma de combate. Para piorar a situação, o mundo
bibliográfico foi invadido pela multiplicidade de sebos gourmet. Ou seja, prometem mil serviços "especiais" ao consumidor – livros higienizados, autografados, primeiras edições, ... Tudo isso com preços acessíveis a quem
acertou – sozinho – na mega sena.
Algum tempo atrás, na última mudança
física, tentando colocar alguma desordem na bagunça que caracteriza a
biblioteca, separei a literatura estadunidense das demais literaturas.
Empilhados contra a parede, seguindo a fórmula exemplar do delegado Espinosa
(personagem do Luiz Alfredo Garcia-Roza), os livros esperam por algum tipo de
organização. Paul Auster está misturado com Sherwood Anderson, Ross Macdonald
faz companhia para Ralph Ellison, Patti Smith parece ignorar Jonathan Safran
Foer. Miscelânea e balburdia. Um dia desses, não sei quando, entro em uma loja
e compro novas estantes.
Susan Sontag (1933-2004) |
“Só pode estar ali”, disse a mim mesmo,
apesar de ter conferido a ausência dois dias antes. Sentei no chão e comecei,
outra vez, a busca. É impressionante a capacidade de dispersão de quem procura
por algo e encontra vários brinquedos pelo caminho. Entre devaneios e interrupções
(fui aquecer a água para o chá, fui até o escritório levar alguns volumes que
tinha separado para trabalhos futuros, fui ler as edições virtuais dos jornais,
etc.), segui na faina de tentar encontrar algo que não desejava se localizado.
Há quem aposte que a primeira Lei de
Murphy (se algo puder dar errado, dará) é mais importante do que todas as
leis da física. Nunca consegui encontrar explicação “científica” capaz de negar
esse axioma. Por exemplo, a fila ao lado flui com mais rapidez – enquanto que
naquela em que estamos alguém resolveu pagar 518 boletos, o pão sempre cai no
chão com o lado untado em manteiga para baixo, etc e tal.
De qualquer forma, um fio de esperança
sempre se fez presente. Ninguém abre mão da probabilidade de encontrar o objeto
perdido na última gaveta, na última pilha de roupas, no último lugar possível de
estar. Não é comum, mas acontece. Faz parte do show.
Eis o fato desolador: o livro não estava
lá! Ou estava e eu, mais uma vez, não o vi. Queria tê-lo encontrado. Mas, ele
desapareceu, volatilizou, sumiu. Talvez esteja em algum lugar que não procurei.
Talvez não exista mais. É uma tristeza dizer isso, mas os livros também morrem.
Incêndio da Biblioteca de Alexandria (48 a. C.) |
Em tempo:
1) Diante da estante em que estão aprisionados
os escritores latino-americanos, descubro que o exemplar de Asco, do hondurenho
Horácio Castellanos Moya, também está desaparecido.
2) Em lugar incerto e não identificado está um pacote da Livraria Cultura. A
transportadora alega ter entregado. Reafirmei para a Livraria que não recebi. Enquanto não localizam
o controle e verificam a procedência da minha reclamação, lembrei de uma das minhas muitas conversas com Mestre João Rath, o ilustre proprietário de A Sua Livraria. Ele
não se cansava de contar que o seu estabelecimento comercial foi assaltado diversas
vezes. Nunca levaram um livro sequer!
3) Ó céus! Ó vida! Ó azar!, se lamentava Hardy, em um desenho animado antigo.
iNACREDITÁVEL! NUNCA TÃO HUMANO COMO QUANDO SE TRATA DE LIVROS! MEU HEROI! GOSTARIA MORAR CONTIGO NUM EDIFICIO ONDE AS PAREDES E ESTANTES DE LIVROS NOS MANTIVESEM PERTO (PRA CONSULTAS. MINHAS EVIDENTEMENTE) E LONGE O SUFICIENTE PARA FUGIR PARA VICIOS IMPENSÁVEIS ( NAMORAR, CERVEJAR, SORVETEAR ETC) ABRAÇO
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