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domingo, 11 de agosto de 2019

A RIDÍCULA IDEIA DE NUNCA MAIS TE VER


Alguns escritores conseguem a façanha de “extrair leite de pedra”. Pegam um assunto qualquer, acrescentam observações pessoais, lembram histórias paralelas, destacam elementos que pareciam estranhos à questão, estabelecem as diferenças entre o céu e o inferno, e, por milagre ou prestidigitação (que se não é a mesma coisa, possui efeito similar), redigem um tratado pouco convencional sobre o tema. Definitivamente, essa qualidade literária encontra na espanhola Rosa Montero uma expressiva representante.

Em A ridícula ideia de nunca mais te ver a proposta está bem delineada. Através de um pretexto, a morte do esposo, Rosa Montero abre a torneira da escrita e inunda a vida de Marie Curie (nascida Marya “Manya” Skodowska, 1867-1934). O luto, desta maneira, se manifesta na vida do Outro. Puro exercício de alteridade. Desses em que ninguém consegue esconder a curiosidade, seja pelo inusitado, seja porque uma pergunta se sobrepõe: qual foi o elo que ligou a imaginação narrativa e o que está sendo revelado? Não há resposta “linear” para essa questão. O que o leitor percebe é que a dor da ausência na vida das duas mulheres permitiu a construção da ponte literária. Uma ponte pênsil, evidentemente. Dessas que balançam a cada passo, as madeiras e os cabos acenando para o abismo.

Rosa Montero
Rosa Montero raramente menciona Pablo Lizcano, o marido morto. É visível a maneira com que o colocou em segundo plano. A santa deste livro é Marie Curie. Sempre a achei uma mulher fascinante, algo com que quase todo mundo concorda, aliás, porque é um personagem incomum e romântico que parece maior do que sua própria vida. Pierre Curie também não obtém muito destaque. No texto, o “momento de glória” do cientista ocorre quando é atropelado por uma carruagem, o crânio esfacelado por uma das rodas do veículo.

A ridícula ideia de nunca mais te ver foi escrito sob a égide feminista. Ao destacar – de forma incessante – as qualidades de Madame Curie, Rosa Montero repete um mantra contemporâneo: a história das mulheres sempre foi mal contada. Ou melhor, as conquistas femininas sempre foram diminuídas ou usurpadas pelos homens.      

É preciso levar em conta que, até o século XX, as mulheres tiveram bem poucas opções de trabalho. As operárias trabalhavam o dobro e ganhavam a metade de que seus maridos recebiam, mas as de classe média nem mesmo podiam ser empregadas, salvo em alguns poucos ofícios de perfil escorregadio: preceptora, dama de companhia... Não havia outra saída senão fazer isso ou escolher uma das três ocupações tradicionais: freira, puta ou viúva. Digamos que, ao longo dos séculos, esses três lugares foram praticamente os únicos que as mulheres puderam ocupar para reger suas vidas por si próprias e fazer uma boa carreira profissional. Abadessa no convento. Cortesã de luxo. Viúva alegre e altiva, capaz de levar adiante a empresa ou o império do esposo falecido.


“Manya” Skodowska


Marie Curie ganhou dois (dois!) prêmios Nobel. Em 1903, dividiu o de Física com Pierre Curie e Antoine Henri Becquerel (pesquisas sobre radiação). Em 1911, ganhou o de Química (descoberta dos elementos rádio e do polônio). Também foi a primeira mulher a ser admitida como professora na Universidade de Paris. No mundo das ciências – predominantemente masculino – Marie Curie estava em desvantagem. Além de ser uma mulher inteligente, também não tinha nascido na França. A união de machismo e xenofobia costuma causar estragos irreparáveis. Não foi o caso. Marie Curie passou por cima dos preconceitos e provou estar em patamar superior.  

Pierre e Marie Curie
Entre pesquisas teóricas e práticas, sempre trabalhando em condições precárias, Marie Curie ainda teve tempo para criar duas filhas. A mais velha, Irene, casada com outro cientista, Jean Frédéric Joliot, também ganhou o Nobel de Química, em 1935. As pesquisas do casal comprovaram a existência do nêutron e da radioatividade artificial.

Evidentemente, brincar com fogo, digo, com radioatividade, custa caro. E naqueles tempos de pioneirismo em uma das áreas mais perigosas da ciência, os sistemas de segurança eram praticamente inexistentes. Não foram mortes agradáveis ou tranquilas. Ao comentar os últimos dias de vida de Marie Curie, Rosa Montero anota: A debilidade e a fadiga a perseguiram durante décadas, e aos sessenta anos mais parecia uma velha de oitenta. (...) seus últimos anos foram muito dolorosos. O rádio a deixou quase cega, e entre 1923 e 1930 fez quatro operações de catarata. A partir de 1932, as lesões das suas mãos pioraram. Morreu em 1934, aos 66 anos, de uma anemia perniciosa causada sem dúvida pela radiação.

Provavelmente foi esse aspecto – a heroicidade romântica – que despertou em Rosa Montero um sentimento difuso que inicia com a admiração e termina com algum tipo de devoção religiosa. Pontuando diversos episódios da história de Marie Curie, o livro se aproxima perigosamente da hagiografia. Felizmente, a vida da biografada não permite esse desacerto. Partes do diário que escreveu logo depois da morte de Pierre, assim como alguns episódios pessoais, fornecem material suficiente para lhe fornecer humanidade. O grande pecado de Marie Curie se chamou Paul Langevin. A questão básica não está em uma viúva procurar por um novo parceiro amoroso, mas em que o escolhido fosse casado. Para os jornais e para a comunidade científica, Marie era uma devoradora de homens que havia destruído um casal com quatro filhos. Pobre Langevin! Foi seduzido pela “viúva negra”! O que ninguém percebe é que Langevin era um crânio em física e matemática, mas parece que na vida real era bastante idiota. Ou seja, um carente afetivo, desses que ensaiam ir embora e uma semana depois estão batendo na porta, implorando para voltar.

O desdobramento dessa complicação oscila entre o drama e a comédia. Na primeira parte, a Real Academia Sueca (ou algum de seus representantes) enviou um comunicado, solicitando que Marie não fosse a Estocolmo receber o Nobel. Evidentemente que a mulher fria como um peixe (na definição de Albert Einstein) não se deixou abater por essa tolice. Em carta aos suecos, escreveu: (...) o premio foi concedido pela descoberta do rádio e do polônio. Creio não haver qualquer relação entre meu trabalho cientifico e os fatos de minha vida privada.... Na segunda parte, há inúmeras publicações nas páginas de fofocas dos jornais e revistas, vários duelos (onde todos os contendores escaparam sem sofrer sequer um arranhão) e uma cena patética. Vários anos depois desses episódios, Langevin pediu que Marie Curie desse um emprego para uma de suas filhas ilegítimas. Claro que ela atendeu a solicitação.  

Por fim, há uma ironia do destino. Uma das netas de Marie (filha de Irene) se casou com um dos netos de Langevin. Marie Curie não viveu tempo suficiente para ver esse acontecimento, mas se assim fosse, talvez cantarolasse uns versos de Caetano Veloso: Deus é um cara gozador / Adora brincadeira.

A ridícula ideia de nunca mais te ver é livro misto, desses que misturam a biografia de um personagem e memorias pessoais. A viúva Rosa Montero não se esconde atrás da terceira pessoa ao retratar a vida da viúva Marie Curie. Ao contrário, aceita o desafio. Com um estilo fluído, de fácil leitura, quase uma conversa entre amigos, nunca perde a oportunidade de fazer algum comentário ou acrescentar dezenas de histórias e indicações literárias.

Os livros de Rosa Montero nos convidam para essa festa que é o espiar pelas frestas da linguagem.  


TRECHO ESCOLHIDO

Tenho o costume de dar o manuscrito dos meus livros a uns poucos amigos para que o leiam e o critiquem, assim posso levar em conta suas opiniões antes da última revisão do texto. É um exercício bastante recomendável: você fica tão absolutamente imerso na obra que está escrevendo que precisa desses olhares de fora para poder ganhar certa perspectiva. Um desses amigos, o escritor Alejandro Gândara, me disse: “No livro estão Marie e Pierre, e do outro lado está você. Mas Pablo não está. Há um desequilíbrio.”


Bem, acho que entendo a que se refere e suponho que ele tem razão. Mas é sempre tão difícil escrever abertamente sobre o mais intimo. Pelo menos para mim. Não gosto da narrativa autobiográfica, quer dizer, não gosto de praticá-la. Ler é outra coisa: há grandes autores que, partindo da sua própria vida, são capazes de criar obras-primas, como Proust e seu Em busca do tempo perdido ou Conrad em Coração das trevas. Mas eu sempre precisei recorrer à imaginação para poder expressar minhas alegrias e tristezas. Personagens de ficção são marionetes do inconsciente.


A conexão entre a realidade biográfica e ficção é um território ambíguo e pantanoso onde inúmeros autores se meteram. Para mencionar um, Truman Capote, que, pretendendo se tornar o Marcel Proust americano, publicou numa revista os três primeiros capítulos da sua suposta grande obra, Súplicas atendidas, fazendo com que todas as suas amigas da alta sociedade rompessem com ele, pois se viram retratadas e traídas a tal ponto que uma delas, Anne Woodward, suicidou-se. O fato é que Capote se tornou um viciado, nunca terminou Súplicas atendidas e se entregou desenfreadamente ao álcool e às drogas, um estilo de vida que o levou à morte da noite para o dia. Ou seja, não saber equilibrar direito ficção e realidade pode ter consequências devastadoras.


Um comentário:

  1. Raul, estou lendo A ridícula ideia de nunca mais te ver. Sua crítica aponta pontos essenciais da obra. DE fato, Rosa Montero coloca Marie Curie em destaque. Os comentários da autora são na verdade sua maneira de subir o pedestal. Excessos feministas às vezes não ajudam na tese. Recomendo aos leitores iniciarem com a leitura pelo diário de Marie Curie, colocado no final do livro. Dessa maneira até os comentário de R. Monteiro fazem mais sentido.

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