Páginas

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

OS VIVOS E OS MORTOS


Em alguns momentos a literatura e o cinema se encontram e produzem maravilhas que deixam o leitor/espectador pensando que o encantamento é uma das formas de dar sentido à vida.

Habitualmente a literatura serve de inspiração para o cinema. Raramente acontece o contrário.

O último filme de John Marcellus Huston é uma adaptação do conto Os Mortos, de James Joyce. Simbolicamente, Os Vivos e os Mortos (título no Brasil) estreou de maneira póstuma no Festival de Veneza, uma semana depois da morte do diretor.  

Publicado em 1914, na coletânea Dublinenses, o conto se concentra em dois episódios distintos. A moldura principal está na festa oferecida pelas “três Graças”: Júlia, Kate e Mary Jane.  Reunindo parentes, amigos e alunos, o evento (que acontece em Dublin, no dia 06 de janeiro de 1904, Dia de Reis) se divide em várias atrações: concerto artístico, baile e ceia. No intervalo entre as atividades, os convidados conversam, bebem ponche ou uísque, namoram, brigam.

Como compete às narrativas de época, o enredo aborda algumas questões pontuais: o nacionalismo, a decadência da vida cultural e as idiossincrasias do círculo de amizades.     

Durante a ceia, Gabriel Conroy faz um pequeno discurso de agradecimento para as anfitriãs. Em tom nostálgico, em certo momento, afirma (...) sempre há, em reuniões como esta, pensamentos mais tristes que recorrem em nossas mentes: imagens do passado, da juventude, das mudanças, dos rostos ausentes de que sentimos falta aqui esta noite. Nosso caminho pela vida é repleto de muitas memórias ruins: e se nós nos remoermos demais nessas memórias, jamais encontraremos forças para seguir bravamente com nosso trabalho entre os vivos.

Nas entrelinhas, as palavras de Gabriel anunciam a finitude da vida, as lágrimas que precisarão ser contidas, o inexorável. E como não há como prever quem estará ausente no próximo ano, o que ele mais teme é a perda da tradição, da alegria e do prazer, dos encontros entre os amigos.

James Augustine Aloysius Joyce (1882 - 1941)
Ao final da festa, Gabriel encontra a esposa na escada, ouvindo o canto de um dos convidados, Bartell D’Arcy. 

A música traduz o ponto divisório da narrativa. A alegria festiva desaparece. Gabriel, que estava empolgado, pensando que poderia desfrutar de um pouco mais de prazer junto com a esposa, descobre que algo de difícil compreensão tomou conta do ambiente.   

No hotel, algum tempo depois, Gretta esclarece o motivo da tristeza. A música a fez lembrar um amor da adolescência, quando morava em Galway. Enciumado, Gabriel quer detalhes, quer saber se ela ainda ama o rapaz. A esposa esclarece que não há motivos para preocupação: Michael Funey morreu de pneumonia aos 17 anos de idade.

Pouco importam as explicações, o desassossego se estabelece. Não há como retornar ao que era antes. A sombra do morto acompanhará o resto da vida conjugal.    

John Marcellus Huston (1906 - 1987)
Alguns pontos de luz no vidro fizeram-no virar para a janela. Havia começado a nevar novamente. Ele assistiu, sonolentamente, aos flocos, prateados e escuros, caindo obliquamente contra os lampiões. (...) A neve caía, também, sobre todas as partes do cemitério solitário na montanha onde Michael Furey estava enterrado. Ela espalhava-se densamente sobre as cruzes tortas e os túmulos, as pontas do pequeno portão, os espinhos estéreis. A alma de Gabriel desmaiou devagar enquanto ele ouvia a neve caindo levemente sobre todo o universo e levemente caindo, como a descida ao seu fim derradeiro, sobre todos os vivos e os mortos.

A versão filmada por John Huston (roteiro de Tony Huston) segue o enredo literário na quase totalidade. Alguns elementos foram suprimidos ou manejados para que aparecessem em outra cena. Nada que modifique a ideia geral. Mesmo assim,...

Mesmo assim, o filme consegue transmitir o sentimento de melancolia e de perda que envolve a trama. Parte desse sucesso se deve à parceria entre Donal McCann (Gabriel) e Anjelica Huston (Gretta).

Nenhum comentário:

Postar um comentário