Os sonhos costumam misturar lembranças, medo e invenção. Mensageiros do inconsciente, muitas vezes abrem as gavetas da memória e jogam luz sobre algumas áreas sombrias. Com os freudianos na comissão de frente, a psicanálise defende algo parecido com isso; o povo (que não entende as sutilezas que envolvem o discurso onírico) prefere acreditar que proporcionam excelentes sugestões para jogar na loteria.
Difícil saber qual é o lado que está com a razão. Talvez seja um pouco de cada coisa ou, para confundir ainda mais o que por si só sempre se mostrou confuso, nenhuma delas. A vida, mil fios desencontrados, não poupa surpresas e (des)encantos.
O
que sei é que sonhos intranquilos têm me acompanhado nos últimos tempos. Apesar
de não os considerar como assustadores, várias vezes acordei banhado em suor,
uma sensação angustiante se confundindo com a penumbra do quarto. A vontade de
dizer Te acalma, minha loucura! se apresenta instantaneamente, mas o bom senso
avisa que o verso da Ana Cristina César não possui serventia para esse tipo de
confusão.
Recentemente
voltei ao passado por conta de uma dessas noites em que a fabulação encontra
espaço dentro da imaginação. Antes de contar o sonho, preciso situar o contexto. Na
infância e pré-adolescência morei no bairro da Brusque. A casa de meus pais
estava situada ao lado da dos irmãos Romano. Uma cerca caindo aos pedaços
dividia os terrenos. Naquele tempo, eu e meus irmãos não entendíamos o conceito
de fronteira e promovíamos incursões na propriedade alheia a todo instante.
Normalmente, éramos recebidos na cozinha (chão batido, mesa rústica encostada
na parede, alguns bancos de madeira, fogão de lenha). Frequentemente tinha café
forte, moído em pilão, e pão feito em casa. Eu, em particular, recebia
tratamento especial: Rogério e Sebastião costumavam me emprestar livros de bolso
(quase todos de faroeste). Na hora de ir embora, agradecíamos os presentes (que
serviam de estímulo para novas invasões).
No
sonho, a casa dos irmãos Romano parecia estar abandonada. Em um ambiente
enevoado, eu chamava por todo mundo, mas não havia resposta. Em determinado momento,
percebi que uma mulher muito bonita (e desconhecida) estava sentada em uma das
cadeiras da sala. Fiquei assustado com aquela presença inesperada. Atraído por uma
força invisível, me aproximei. Ela se levantou e, com gestos que pareciam fazer
parte de uma coreografia barroca, me estendeu um envelope. Não sei o que tinha
dentro, talvez uma mensagem, talvez um objeto, poderia ser qualquer coisa,
fiquei sem saber. Nesse momento, acordei.
Não
há nada de sensacional nesse sonho. Na superfície, parece ser apenas um
devaneio sobre o passado que se perdeu no tempo e que somente pode ser
recuperado enquanto fantasia. Antes de ter essa opinião, procurei por camadas
textuais que poderiam estar escondidas em alguma dobra do imaginário e que não
tive competência para “ler”. Nada encontrei. E, nesse ritmo, descartei a
possibilidade de ser parte de um processo mental complicado sobre a solidão ou,
quiçá, alguma referência psicológica sobre as minhas dificuldades econômicas (quais
seriam as chances de encontrar um cheque dentro daquele envelope?). Também não consegui
localizar qualquer alusão a respeito da situação política do Brasil. Sequer
obtive algum palpite para o jogo do bicho.
Se
o desejo está contido em cada sonho, como afirmam alguns especialistas nas artes adivinhatórias, falhei na interpretação. Não é a primeira
vez que isso acontece – não será a última.
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