Páginas

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

DIÁRIO DA QUARENTENA (CXCI)



Resolvi jogar fora uma série de papeis que foram se acumulando ao longo do tempo: recibos, notas fiscais, recortes de jornal, suplementos literários, etc. É um trabalho insano e interminável – e que costumo adiar sempre que posso. Seja porque não há nada mais desagradável do que o tédio, seja porque a memória costuma nos assustar com lembranças inesperadas, foi no meio da faina que me lembrei dos dois cartões postais. Sim, eram dois, mas só tenho um deles. Onde será que o guardei? Movido pela curiosidade, abandonei o que estava fazendo e fui procurar. O encontrei dentro de um envelope pardo, misturado com selos, revistas antigas e outros postais (fotos de escritores, poemas, paisagens). 

No final dos anos 80 do século passado passei alguns dias na Europa. Em Roma, comprei vários cartões postais, rabisquei algum texto protocolar, talvez o deslumbramento de estar longe de casa, e os despachei na primeira agência dos correios que encontrei. Lembro bem daquele dia ensolarado. O funcionário, ao ver os endereços, disparou uma série de gestos exclamativos e elogios ao Brasil. Confesso que não entendi 10% do que ele disse. Meu vocabulário da língua italiana era ridículo (ainda é). O que se salvou daquele monólogo (eu devo ter pronunciado, no máximo, umas três frases em português) é que ele jogava vôlei e tinha visitado o Rio de Janeiro algum tempo antes. Paguei as tarifas postais, balbuciei um grazie mille e fui, na companhia da mãe do meu filho, caminhar pelas ruas da cidade.

Cerca de um mês depois, quando regressei, Dona Maria Josefina Rath de Oliveira, proprietária de A Sua Livraria, agradeceu a lembrança e me fez uma promessa singular: iria retribuir o gesto. Afirmou que, independente do tempo que demorasse, ela me mandaria um cartão postal do exterior.

Confesso que fiquei impressionado com essa declaração, pois Dona Maria somente saia de casa na companhia do marido e quem conheceu João Rath sabe que não existia a possibilidade dele entrar em um avião. Claro que poderiam viajar – de carro – para algum país sul-americano. Mas essa hipótese também parecia improvável. O espírito sedentário dominava o casal.

Uns seis anos depois, Dona Maria, leve como uma lufada de vento, atravessou o continente e foi conhecer a Disneylândia. Por mais surpreendente que possa parecer, uma senhora de 60 e alguns anos foi passear em Estados Unidos. Teve como companhia a filha, o genro e alguns dos netos. João Rath ficou em casa. Segundo relatos da época, a viagem foi muito divertida.      

Despachado de Orlando, na Flórida, o cartão postal foi recebido nos últimos dias de janeiro de 1995. No verso, ela escreveu: Raul, Eliane (sic) e Dimi (sic), estou com saudade dos amigos. Tenho passeado muito. O inglês do Armindo é maravilhoso, pena que aqui eles não entendem. Abraços, Maria. Como costumava ser praxe na história da família, qualquer coisa era motivo para brincadeiras particulares. Isso explica a engraçada observação sobre o domínio linguístico do genro.

Tantos anos depois, rever o cartão postal me ajudou a diminuir a saudade que sinto de Dona Maria e do João Rath – pessoas que, sem encontrar melhor definição, foram, durante muitos anos, meus anjos da guarda.



P.S.: O cartão, datado de 15 de janeiro e postado em 19 de janeiro de 1995, foi enviado para o endereço de A Sua Livraria – que fechou as portas em 2009.


Em foto de 1993, o então prefeito de Lages, Carlos Fernando Agustini,
abraça o casal Maria e João Rath.
                                                       
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário