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quarta-feira, 21 de julho de 2021

DIÁRIO DA QUARENTENA (CCV)

 


João conhece a cidade pela janela do ônibus. Aposentado, morando sozinho, todas as manhãs embarca no primeiro veículo que encontra no terminal de passageiros próximo de sua residência. O destino não faz diferença. O importante é se deslocar pela imensidão urbana.

Na janela, fica vendo o mundo passar – como se o mundo só existisse encapsulado nas imagens que surgem e desaparecem diante do olhar. Coleciona histórias que nunca poderiam ser suas. Miudezas que anestesiam a perda irreparável de cada dia. Uma forma de medir a escuridão, de conversar com o invisível.  

A cidade vai adquirindo contornos surpreendentes. Mudanças que indicam movimento, mas que são realizadas de maneira imperceptível. Como se fossem varridas pelo vento, as casas de madeira, heranças de outros tempos, foram substituídas por prédios com vidros espelhados – habitados por pessoas que sequer se cumprimentam no elevador. A expansão incontrolável da cidade em direções que antes eram consideradas como inabitáveis estabelece uma nova geografia urbana.

Pela janela do ônibus, as placas dos estabelecimentos comerciais se transformam em borrões que ficam para trás. Essa velocidade contrasta com o tempo que emoldura o passado, momento em que era necessário arar a terra, preparar o campo antes da semeadura. Infelizmente, pensa João, a estação de colheita passou, a lavoura perdeu a fertilidade, as árvores foram abatidas.

A bagunça produzida por algumas crianças, estudantes que estão indo para a escola, quebra o silêncio. Ou melhor, atraem a atenção de João. Algum tempo depois, elas desembarcam diante do colégio e isso produz o vazio. Aquele mesmo que João sentiu quando viu o homem que chorava compulsivamente – como se estivesse sendo atravessado por uma dor intensa. Nesse momento, a tristeza foi compartilhada. Um era o outro e nada poderia ser feito para eliminar o sentimento de perda.

João queria ter o estoicismo filosófico do gato que dorme na varanda da casa amarela. Queria esquecer que a virtude, assim como o fio da navalha, pode machucar. Para afastar pensamentos ruins, se distrai com a conversa das mulheres que estão sentadas no banco da frente. Falam, em tom de malícia, sobre os casos amorosos de uma terceira pessoa. Trivialidades ressentidas.   

Algumas vezes, João troca de ônibus aleatoriamente, deixa que a roda da fortuna escolha uma nova direção. Qualquer coisa que o afaste da angústia é bem-vinda. Qualquer coisa que impeça as manifestações do coração áspero. Sempre há regiões desconhecidas, espaços oníricos, lugares em que o horizonte anuncia promessas e chuva.   

Ao final da manhã, João volta lentamente para casa. Depois do almoço, talvez vá caminhar um pouco, o médico o alertou sobre alguns cuidados básicos com a saúde. Talvez apenas espere por um novo dia, quando tudo recomeçará. 

 

2 comentários:

  1. Raul, meu amigo, o texto é magnífico, capaz de nos raptar logo nas primeiras linhas. Aos poucos, ele vai nos conduzindo pelos labirintos das observações de João, num sobe e desce ladeira inebriante...
    Parabéns, Raul. A mão continua afiada e pronta para dar o bote no leitor. Tudo isso, é claro, com o nosso total consentimento!

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