O futebol, a mais importante das coisas menos importantes, como afirmou Arrigo Sacchi, está pouco representado na literatura brasileira. Salvam-se alguns contos, um ou dois romances, três ou quatro biografias e meia dúzia de ensaios. O resto beira o descartável – alguns usando o esporte como trampolim para discutir assuntos aleatórios.
Talvez a explicação para isso esteja no campo psicológico: quem gosta de futebol costuma ignorar os deslizes de alguns jogadores. Nessa ausência de separação entre a vida privada do individuo e a habilidade futebolística costuma-se fechar os olhos para as cafajestadas, as agressões domésticas, as amizades espúrias e os golpes financeiros. Tudo é permitido (inclusive elogiar as santas mães e irmãs dos adversários e dos árbitros). Basta fazer gols ou defender ataques do adversário – e está perdoado.
Em El Bólido Agustin (Editora Quelônio, 2023), André Rosemberg abordou o futebol (e suas nuances) em três textos ficcionais. São narrativas longas e que, talvez, possam ser consideradas como novelas. E isso acontece porque André se afasta da economia textual. Podendo escrever uma frase com sujeito, verbo e predicado, ele prefere acrescentar uma quantidade enorme de figuras de linguagem. É uma forma de expressar, pela multiplicidade das palavras, o máximo de sentimentos. Funciona – neste caso.
Na primeira novela, com uma linguagem que
se aproxima da crônica, o narrador conta a história de um argentino que
pendurou as chuteiras depois de ter jogado no Flamengo. Seus momentos de glória
ficaram gravados nos anos 50, quando o esporte ainda era capaz de produzir uma
aura mítica, ou seja, aquele momento em que os seres humanos eram confundidos
com os deuses. Com a inevitável decadência técnica, Agustin de Oviedo y Oviedo
continuou vivendo entre as quatro linhas do gramado, mas em outra função: cronista
esportivo. O texto é uma espécie de relato da angústia, da tentativa de
encontrar saída para uma vida que, em algum momento, perdeu o sentido. Como faz
parte da tarefa narrativa, vão sendo somados os fatos, as histórias, o
folclore, as idiossincrasias, o revelar que a divindade estava se esvaindo.
Mais cedo ou mais tarde, todos se tornam pasto de los gusanos, como diria
Agustin.
O segundo relato (Meu Camarada Garrincha) tem como figura central Eduard Anatolyevich Streltsov (1937 - 1990), que jogou no Торпедо (Torpedo), de Moscou, e na Seleção da União Soviética, campeã das Olimpíadas de 1956. Na véspera de embarcar para a Suécia, onde se realizaria a Copa do Mundo de 1962, Streltsov foi acusado de estupro e, logo em seguida, condenado a trabalhos forçados em Vyatlag, na Sibéria. Intrigas palacianas? Ninguém é jovem, bonito e talentoso impunemente. Muitos interesses estavam em jogo e Streltsov tinha uma personalidade com dificuldade para assumir a submissão aos desígnios políticos. No melhor texto do livro, ao descrever (ficcionalmente) o sofrimento em um mundo hostil, André Rosemberg cria um diálogo unilateral entre Streltsov e Garrincha.
Sabe, tenho uma saudade terrível da bola. Às vezes, me pego chutando o ar enquanto durmo. Grito também. Passa a bola, paizinho! Estou livre na área, não me enxerga? Sou centroavante, sabe? Tenho faro de artilheiro. Dizem que jogo mais que o Valentin Ivanov. O Valentin é meu companheiro de ataque no Torpedo. Ele também foi para a Suécia. Um craque, Garrincha. Dizem que sou craque também. Sem modéstia, faço muito gol. Muito gol mesmo. Ou fazia... nem sei mais. Acho que me aleijaram para sempre. Me bateram muito quando cheguei aqui. (p. 90)
A última novela (O Juiz) se concentra nos aspectos psicológicos de um árbitro de futebol que precisa lidar com inúmeras complicações: a religiosidade confusa, o homossexualismo enrustido, o conservadorismo político, a esposa doente. A soma de todas essas questões resulta em crises intestinais vexatórias. Ao apitar Santos x Corinthians (4 a 1) ou União Soviética e Colômbia (Copa do Mundo de 1962, Chile, 4 a 4), João (que é descendente de húngaros) precisa tentar equacionar o turbilhão que o atormenta. Obviamente, algumas coisas saem do controle.
El Bólido Agustin é indispensável para quem gosta da mistura entre literatura e futebol.
Eduard Anatolyevich Streltsov (1937 - 1990) |
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