Páginas

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

SAFARI

 


A violência possui propriedades camaleônicas. Essa tese está demonstrada nos três segmentos que compõem Safari, romance escrito pelo chileno Pablo Toro Olivos. Seja na guerra do Iraque, seja na escola, seja em um reality show, a selvageria está presente e ninguém está isento de ser atingido por esse tipo de horror.

Eric Villanueva (o personagem que aparece em todas as fases da narrativa) descobre que a dor se transforma em efeito colateral, secundário. Ninguém se importa com ela – nem mesmo aquele que a sente. Sobreviver parece ser a norma, o objetivo, a possibilidade de atingir o horizonte – que sempre está muito distante. E, nesse percurso, a linha tênue que separa a civilidade e a barbárie costuma ser rompida a todo instante – inclusive porque não faltam pretextos para que isso aconteça. O arrependimento deixa de existir quando algo maior está em jogo. Somente os fracos hesitam. Vencer supera os danos. Porque é assim que se deve proceder diante dos obstáculos.

No primeiro episódio (A noite do camelo) os mercenários chilenos Villanueva e Gutiérrez precisam raptar um dromedário. A história, além de ser absurda (inclusive por ser verossímil), multiplica a violência de forma hiper-realista. Depois de ter sido preso e torturado no Iraque, Jack Donovan (um dos principais soldados da empresa terceirizada que está atuando no Oriente Médio) adquire um fetiche carnívoro-sexual muito estranho. Nesse cenário, onde os combates mimetizam a luta pela sobrevivência – com todas as nuances que caracterizam a brutalidade humana – a caça ao camelídeo tira o foco dos interesses do capitalismo predador e se concentra na agressão sem sentido ou consistência.

As questões morais que se apresentam na segunda parte do livro (As eleições) mostram que o escrúpulo se transforma em figura retórica quando, na luta entre Eros e Tanatos, a etiqueta e os limites morais perdem a importância. O gozo (que caminha de mãos dadas com a pulsão da morte) cria a ilusão de que as incertezas e as carências podem desaparecer. A morte (imaginária, simbólica, efetiva) pertence ao outro, ao inimigo – aquele que está destinado a ser aniquilado sem piedade. E para que isso se concretize vale utilizar a coação, a possibilidade de tornar público alguns segredos e a opressão psicológica.

O terceiro episódio (Safari) possui semelhanças com várias narrativas contemporâneas: Jogos Vorazes (Suzanne Collins), Battle Royale (Koushun Takami), O Senhor das Moscas (William Golding) e os filmes O Show de Truman (Dir. Peter Weir, 1998) e Bacurau (Dir. Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019). Em um futuro não muito distante, alguns criminosos são colocados em uma arena televisionada para serem caçados por milionários. Nesse programa de entretenimento, que simula uma selva tecnológica, os prisioneiros, se conseguirem resistir por três sessões, serão premiados com a anistia e uma gleba de terra – onde reiniciarão a vida social como agricultores. Como acontece em textos complexos, há outra luta se desenvolvendo em paralelo. Fora desse Coliseu moderno, a carnificina também está presente. A luta por ascensão social e econômica projeta outro tipo de brutalidade – talvez menos sanguinária, mas igualmente agressiva. 

Safari foi eleito o melhor romance chileno de 2022 e mostra, sem usar subterfúgios, algumas das faces de um mundo que estabeleceu na violência o seu objetivo mais importante.


TRECHO ESCOLHIDO

Outro foguete RPG caiu a alguns metros da casa e o mercenário Villanueva viu as paredes caindo, viu que o telhado desabava sobre eles e correu em pânico, cruzou o batente da porta, caiu no chão, fechou os olhos, pensou ter visto um exército de mortos, ouviu os gritos dos mortos amplificados por um tubo amarelo que se estendi desde os esgotos do mundo até o céu doente de Bagdá e então lhe veio um choque elétrico nas costas, ou melhor, ele sentiu que tinha uma espinha, como um peixe, e logo não sentiu mais nada, apenas pôde ver a estrutura destroçada e algumas vigas pontiagudas que caíram sobre Gutierrez e seu corpo dividido em dois.

A cabeça de Gutierrez, já separada do resto do corpo, girou sobre si mesma. Vista de baixo, recortada contra o céu negro, parecia um meteorito de carne. O mercenário Villanueva olhou nos olhos do morto e achou que eles pulsavam, ou que talvez retivessem um sopro de vida. Essa foi, então, a última imagem que a cabeça veria neste mundo: os olhos de outro homem, ferido, assustado, desejando estar em outro lugar e pensando em sobreviver para a próxima batalha. (p. 63-64).   

 


Pablo Toro Olivos (Santiago do Chile, 1983)

Nenhum comentário:

Postar um comentário