A linguagem é uma segunda pele. Muitas vezes ela é conduzida ao dermatologista e recebe várias aplicações de toxina botulínica. Tudo fica esteticamente harmônico, sem rugas, sem flacidez, sem palavrões, sem ofensas, sem trocadilhos de quinta série. O cheiro dos esgotos costuma ser encoberto pelo aroma dos jardins floridos. Chamam isso de procedimento civilizatório. Há quem goste.
No canto oposto do ringue estão as piadas de mau gosto, as metáforas inadequadas, o humor típico das óperas bufas, a ironia, o sarcasmo e a celebração dos contornos da pornografia. Não há limites para essas expressões da linguagem. Desconhecem (ou omitem) a ética, a moral e o bom comportamento. O céu é o limite.
Entre esses dois estágios da linguagem existe um conjunto de normas que regulamenta a escrita literária. Mas isso significa um impedimento para abordar questões que denunciam os interesses da classe média, as sacanagens políticas, as patifarias comerciais, as safadezas que ocorrem entre quatro paredes, o conluio entre as forças de repressão e o capitalismo opressor – principalmente quando as classes trabalhadoras são sodomizadas por aqueles que detém os meios produção.
De vez em quanto surgem exceções ao bom mocismo. O romance O Presidente Pornô (Companhia das Letras, 2023) aposta na transgressão. Usando uma linguagem sem papas na língua, o texto lambe as feridas da história recente do Brasil – muitas vezes Plazil, grafado com “p" e "z”, identificando um remédio adequado para problemas no sistema digestivo. E que deveria se mostrar eficaz quando é necessário conviver com enjoos, vômitos e muitos dejetos corporais. Por diversas razões, inclusive farmacêuticas, não funciona.
Através da paródia, o livro inventa um país que não é a idolatrada salve salve. Quer dizer... É um lugar ficcional – e que, tanto lá como cá, celebra o velório da democracia. E que não se constrange em demolir alguns dos princípios básicos da vida comunitária. Seus habitantes usam e abusam da retórica anti-intelectual, do machismo, do racismo, da discriminação das minorias, da censura aos meios de comunicação, e não se preocupam com a metástase que está corroendo o tecido social. São adeptos do quanto pior, melhor.
Nesse sentido, a linguagem precisa ser utilizada como uma arma política. Há a necessidade de usar todas as letras do alfabeto para configurar o discurso da contestação, do escárnio, da denúncia do ridículo. E fugir do fútil, do insipido, da assepsia, da correção estética. Enfim, produzir uma escrita crua, sem eufemismos, sobre os avanços do autoritarismo e da extrema direita ao sul do Equador.
Recusar essa prática libertina e libertária pode resultar em colapso mental, em constipação, em úlceras, colites, câncer colorretal. Uma vida saudável precisa esvaziar o intestino e liberar o bolo fecal. E isso só se torna possível quando a linguagem não está conectada com a repressão dos esfíncteres.
Concordando com a prática medicinal, O Presidente Pornô mostra um conjunto de cenas escabrosas, onde vicejam as ideologias mais estapafúrdias, o extremismo religioso, a mesquinharia econômica, a necessidade psicológica da submissão, o medievalismo e a consequente eleição do indivíduo mais despreparado para o exercício presidencial. São momentos similares aos bárbaros invadindo a Praça dos Três Poderes, em Brasília, ou a polícia matando de forma indiscriminada os jovens negros.
A
visualização desses horrores, protagonizados pelos "pautriotas", não resolve as questões básicas, mas permite um
nível de entendimento da realidade que o leitor não encontra nos romances água
com açúcar ou nos dramas da pequena burguesia (que constantemente chora quando
não encontra o pirulito com o seu sabor preferido).
O Presidente Pornô, uma fúria carnavalizante, desagrada os ingênuos e os moderados (esses que fazem cara feia à linguagem próxima daquela que é usada diariamente nas comunidades urbanas periféricas). É um livro para leitores que estão cientes de que a vida é tiro, porrada e bomba.
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