Um dos contos de Raymond Carver (1938-1988), Catedral, tem como enredo a visita de um homem com deficiência visual, Robert, a uma antiga colega de trabalho. O marido dela não se sente confortável, mas tenta disfarçar o desagrado. Em algum momento da noite, os dois homens assistem na televisão um documentário sobre igrejas europeias. O cego propõe um jogo: desenhar uma catedral. Com ajuda da mão daquele que possui a visão, os dois conseguem compor uma imagem. Ao fornecer visualização para a experiencia cooperativa, Carver indica a superação da lógica individualista como um caminho menos árduo.
O corpo de Ana Sardá, dezessete anos, é encontrado esquartejado e queimado em um terreno baldio de Adrogué (região metropolitana de Buenos Aires). Trinta anos depois, não há explicação para essa situação. Partindo desses dois elementos narrativos, e inspirada pelo conto de Raymond Carver, Claudia Piñeiro escreveu o romance Catedrais (Primavera Editorial, 2024).
Catedrais é um desses livros que, lá pela metade, o leitor percebe as turbulências que estão prestes a ser reveladas. Mas isso não é impedimento para abandonar a leitura. Ao contrário. É necessário confirmar o que está sob suspeição. Além disso, a divisão narrativa na voz de sete personagens (Lia, Mateo, Marcela, Elmer, Julián, Carmen e Alfredo) vai acrescentando detalhes de forma homeopática. O que, de certa forma, antecipa o desfecho. Mesmo assim, o olhar seccionado de cada um dos participantes, como se fossem peças de um quebra-cabeças, contribui para que a imagem somente se complete nas últimas páginas do livro.
A personagem base da narrativa, Lia, é dona de uma livraria em Santiago de Compostela. Movida pela tristeza, atravessa o Oceano Atlântico logo depois da morte de Ana, se instala em Espanha e abandona as raízes familiares. Esporadicamente, escreve para o pai. Mas faz questão de manter distância da irmã mais velha, Carmen, que considera arrogante e tóxica, e da mãe, Dolores, uma mulher amarga e que sempre esteve ausente das questões mais importantes da vida de suas três filhas.
Em todo o texto, existe uma discussão envolvendo a vida privada e a vida social. Principalmente naqueles momentos em que a hipocrisia alimenta a manutenção das aparências e a defesa da moral e dos bons costumes. Em determinado momento, Carmen expõe esse projeto em uma frase: ... o horror é o preço necessário para proteger um bem maior.
Às vezes, as perguntas são muitas e não basta apenas se perguntar quem matou e por quê, comenta Elmar, o técnico em criminalística que fez o laudo sobre a morte de Ana – e que, trinta anos depois, é contratado por Alfredo para desvendar o passado. É ele (mantendo a necessária distância emocional) quem esclarece parte dos acontecimentos.
Descontadas as incontornáveis divagações que envolvem a trama romanesca, o livro se desenvolve em torno do pulsar da morte de Ana (que continua presente, seja como lembrança, seja como trauma). Simultaneamente, a narrativa quer mostrar uma das maneiras como algumas pessoas são empurradas para situações que, em algum momento, se tornam incontroláveis. A toda ação corresponde um desacerto.
Há lugares onde é mais difícil sobreviver: em um deserto, em uma ilha desabitada, no alto de uma montanha, em Marte, em um país em guerra, na selva. Com a minha família, desabafa Mateo, filho de Carmen e Julián, e que, a partir de determinado momento, se torna um dos personagens centrais do drama. Isso acontece porque ele foge dos pais e vai encontrar a tia. É em Santiago de Compostela, com a mão de Lia sobre a sua, que desenhará (metaforicamente) a sua catedral.
Se
alguns leitores imaginarem que Catedrais é uma espécie de romance policial,
cabe esclarecer o engano. Trata-se de um estudo psicológico sobre os mecanismos
que envolvem a estrutura familiar, as rupturas da fraternidade, a violência
contra a mulher e os males causados pelo fanatismo religioso. E talvez seja a
resposta para uma pergunta contundente: É importante saber por que sofremos o
que sofremos?
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