Usando o discurso da segurança pública, em um futuro remoto (no entanto, mais próximo do que se imagina), o governo de Reykjavík está organizando um plebiscito para decidir se a população será submetida compulsoriamente a um teste de empatia. Querem prever comportamentos antissociais, crimes e movimentos contrários aos interesses do Estado. Em outras palavras, essa consulta popular é um mecanismo de dominação sobre os indivíduos.
O enredo de A Marcação (Editora Fósforo, 2023), romance da escritora islandesa Fríđa Ísberg, mostra a gênese do autoritarismo. A cadela do fascismo sempre está no cio, como dizia Bertolt Brecht. E nunca perde a oportunidade para reprimir o direito à diversidade, à discordância, à liberdade. Ambicionam estabelecer uma linha de conduta que apresenta soluções simplistas para problemas complexos. Isso significa que algumas decisões políticas (movidas por interesses outros que fogem da percepção imediata dos eleitores) são instrumentos corrosivos da democracia.
Aqueles que não forem aprovados no teste precisam ser “reprogramados” através de consultas com psicólogos e o uso de algumas drogas legalizadas. Trata-se de uma forma “mais civilizada” de domesticar os dissidentes e de trazê-los para a “normalidade”. Em lugar de mandá-los para a Sibéria, as clinicas de reabilitação.
O argumento mais importante dos defensores do plebiscito apresenta como prioridade o controle das taxas de criminalidade. Sintomaticamente, esse é o seu ponto mais frágil. Os índices criminais na Islândia são quase insignificantes. Em 2022, cerca de 200 pessoas estavam encarceradas (segundo o Banco Mundial, a população da Islândia, na mesma data, era de 382.003 pessoas). No entanto, o medo coletivo é mais forte do que a racionalidade. E todos aqueles, individualmente ou de forma coletiva, que se opõem a esse projeto repressivo são considerados inimigos. Essas pessoas, de uma forma ou de outra, precisam ser "resgatadas" para que prevaleça a ordem social – ou seja, a norma jurídica.
Algumas questões vão sendo reveladas no decorrer das 272 páginas do livro. E muitas delas são derivadas do organismo econômico. A especulação imobiliária aparece como um dos fatores de segregação. Áreas “seguras” (monitorizadas pela polícia) são valorizadas pelo mercado. Nas regiões que se mostram contrárias ao plebiscito, muitos imóveis não despertam a atenção de quem necessita de moradia. Todos desejam morar em lugares que não ofereçam perigo. Consequentemente, os índices de adesão ao plebiscito aumentam. Simultaneamente, essa política territorial aumenta o processo de gentrificação (expulsão dos moradores originais para locais afastados e que não contam com planejamento urbano eficaz).
A evasão escolar, o uso de drogas ilegais, a ausência de vínculos afetivos e despersonalização imposta pela sociedade tecnológica são outros problemas apontados em um mecanismo social que propõe o bem-estar do cidadão, mas que adota a opressão diária como elemento de uniformização das práticas cotidianas.
Os que discordam da proposta governamental precisam encontrar algum tipo de trabalho não qualificado e que esteja fora da zona de influência do Estado. E isso, obviamente, origina outras formas de exploração da mão-de-obra.
É essa
situação política, de visível inspiração da extrema direita, que o romance
denuncia, embora o tema não seja novo. A Marcação possui semelhanças com o conto Minority Report, de Philip K. Dick (a versão cinematográfica, Minority
Report – a nova lei, com Tom Cruise, foi dirigida por Steve Spielberg em 2002).
Fríđa Ísberg |
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