Pensamos
os muros como se fossem passivos.
Sem
voz. Mas eles falam
Muitas histórias ainda precisam ser contadas sobre o período em que o Brasil esteve nas sombras. São essas sobras que estão vindo à tona, como aqueles cadáveres que a repressão política jogou no mar. Aos poucos, os depoimentos (nas versões dos sobreviventes, nas versões dos que foram torturados) vão sendo publicados, vão revelando a barbárie, a mesquinharia, o horror.
No dia 20 de dezembro de 1968, Cléa, uma das personagens de No Muro de Nossa Casa, de Ana Kiffer (Editora Bazar do Tempo, 2024), descobriu que alguém tinha escrito no muro em frente de sua casa, em letras vermelhas, aqui mora um bandido comunista. Grávida, ela passou parte da manhã apagando, com água e sabão, aquela sentença condenatória. Foi ajudada pelo cunhado, Lúcio.
Muitos anos depois, cabe à filha, Ana, aquela que estava no ventre, estabelecer as bases de um diálogo com a mãe e relatar os principais fatos familiares e políticos daquele período de trevas. É uma conversa truncada, onde a voz que conta e a voz que lembra nem sempre estão na mesma sintonia. Nesses hiatos em que a mudez também se movimenta no texto, a correnteza arrasta as lembranças e tenta desaguar em algum tipo de acerto de contas.
Com uma linguagem que transita do poético ao descritivo realista, Ana não hesita em declarar o tratamento literário (calcado no real) do relato: Reescrevo sobre a verdade mentirosa dos muros com outra cor, com outra dor.
O pai, ex-deputado federal, desaparecido (e, depois, preso), a mãe detida, os irmãos pequenos que não entendem porque a casa foi invadida pelos soldados, a violência contra o corpo das mulheres, os vizinhos que não querem se comprometer, a iniquidade produzida pelas sessões de tortura – cicatrizes que nunca serão esquecidas, que ardem a todo instante, companheiras do infortúnio. É difícil resumir as inúmeras questões que estão colocadas no texto.
Nessas memórias, Ana cava no âmago do sofrimento (ciente de que isso amplia a dor) e extrai o medo, a tensão, o silêncio e uma parcela narrativa. Sem esse esforço amargo não é possível recuperar parte da história de seus pais, de seu país. Então digo: mãe, este livro é o muro que reescrevemos juntas. Estamos colocando ali as letras que no passado você foi obrigada a apagar. Estamos colocando outras letras sobre essas. Estamos escrevendo sobre o muro. Com letra dura. Um murro, escrever é um soco.
No Muro de Nossa Casa descreve o quão difícil é a luta feminina, a resistência, o estraçalhar dos planos e a superação. Sobreviver é ignorar as palavras horrível que o machismo escreve diariamente na parede branca do muro. Sempre em letras vermelhas – para avisar que qualquer deslize resultará em sangue derramado. Sinto as suas mãos fortes. Brutas. Castigadas pelo trabalho de homem num corpo de mulher. Difícil ter um corpo de mulher. Tomo em minhas mãos as brutalidades sobre o seu corpo. Sobre o delas. Sobre o meu.
Narrativa densa, com menos de 100 páginas, No Muro de Nossa Casa é um livro repleto de nuances, onde alguns acontecimentos estão subentendidos. São fatos bloqueados emocionalmente pela aflição, pelo suplício. Situações amputadas da memória. Não sentir mais. Não sentir mais é um desastre da violência.
Mãe, acho que esse livro é sobre um muro. Talvez sobre vários muros. Ainda hoje barrando e impedindo que um lado e outro se falem. Que alguns passem e outros não. Que muitos morram sobre e sob o muro. A maior parte de quem tenta transpô-lo também. É ainda sobre o muro da nossa casa. É sobre sobreviver expulso do próprio país.
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Ana Paula Veiga Kiffer |
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