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terça-feira, 11 de março de 2025

A CARNE (um conto de Virgilio Piñera Llera)

 


Em um determinado país, em uma determinada época, está faltando alimentos – principalmente carne. Alguns protestos foram esboçados, mas logo perderam forças. O único que adotou uma posição efetiva diante da crise foi o senhor Ansaldo. Depois de afiar uma faca de cozinha, ele cortou um razoável filete da sua nádega esquerda. Limpou a carne e a temperou com sal e vinagre. Depois, fritou o pedaço de carne em uma grande frigideira. Quando se sentou à mesa para desfrutar do banquete, um vizinho surgiu. Ansaldo lhe mostrou a comida e explicou onde a havia conseguido. O vizinho foi embora e logo depois voltou com o prefeito – que cumprimentou Ansaldo por ter encontrado uma solução para o problema: Éste expressó a Ansaldo su vivo deseo de que su amado pueblo se alimentara, como lo hacia Ansaldo, de sus proprias reservas, es decir, de su propria carne, de la respectiva carne de cada uno.

Na praça principal do povoado, Ansaldo fez uma demonstração prática. Foi um glorioso espetáculo. E que resultou em alimentos para todos: algumas mulheres cortaram os seios, houve quem comesse os dedos, algumas pessoas provaram a própria língua ou os lábios – incontestes iguarias. Um dos homens mais gordos do povoado (e que era muito guloso) gastou toda a sua reserva de carne em quinze dias – o que causou o seu desaparecimento.

Outras pessoas não foram mais encontradas. Essas ausências provocaram angústia e algumas pessoas começaram a indagar sobre o que estava acontecendo. As autoridades, por fim, decidiram que não se deveria hacer más preguntas inoportunas, y aquel prudente pueblo estaba muy bien alimentado.       

A carne faz parte do volume Contos frios, publicado em 1956, e é um exemplo de uma literatura que transita entre o absurdo e a loucura, mas que tem como propósito principal propor a discussão política. É através da metáfora autofágica que Virgilio Piñera Llera (1912-1979) denuncia o descaso, por parte do governo, com as políticas de abastecimento alimentar. O corpo humano perde a sua essência e, reduzido ao status insólito do alimento, confirma que a vida não tem mais importância. Tudo se reduz ao tempo em que é possível sobreviver devorando a si mesmo. ¿De qué podría quejarse um pueblo que tenía asegurada su subsistencia?   

 

Virgilio Piñera Llera (1912-1979)


Salvo engano, foram publicados no Brasil apenas dois livros de Virgilio Piñera: Contos Frios (Iluminuras, 1989) e A Carne de René, que teve duas edições (Siciliano, 1990, e Arx, 2003). Também foram publicados, aqui e ali, em antologias, alguns contos.

Piñera precisou, durante toda a sua vida, lutar contra duas barreiras quase intransponíveis: a pobreza e a homossexualidade. E, como não poderia ser diferente, precisou pagar o preço exigido pela sociedade “normal”. No primeiro caso, passou fome na Argentina, onde fez algumas traduções e revisões para a embaixada cubana (1946-1958). Amigo de outro exilado, Witold Gombrowicz (1904-1969), foi elogiado por Jorge Luis Borges (1899-1986), além de outros intelectuais sul-americanos. Mas isso não diminuiu os seus problemas. Algum tempo depois da Revolução Cubana, em 11 de outubro de 1961, foi preso durante a operação policial denominada la noche de las tres pes (prostitutas, proxenetas e “pajaros” [homossexuais]), mas que visava retirar de circulação intelectuais, artistas, vagabundos, praticantes de vudu e qualquer pessoa considerada suspeita. Foi libertado no dia seguinte porque não ficava bem para o governo reprimir um escritor conhecido na comunidade latino-americana. Recebeu o Premio Casa de las Américas, em 1968, pela peça teatral Dos viejos pánicos – que só foi encenada em Cuba na década 1990. 


Virgilio Piñera Llera e José Lezama Lima


OBS: as citações no original espanhol foram extraídas de: PIÑERA, Virgilio. Cuentos completos. Ciudad de La Habana: Ediciones Ateneo, 2002.  

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