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terça-feira, 8 de abril de 2025

TEORIA DO MEDALHÃO

 


Um dos contos de Machado de Assis, Teoria do Medalhão, originalmente publicado em 1881, no jornal Gazeta de Notícias, e que integra o livro Papéis Avulsos, de 1882, pode ser lido como um manual de instruções para o arrivismo. 

Um pai, ao comemorar o aniversário de maioridade do filho, Janjão, o instrui sobre como se comportar nos negócios e na vida social. Diz o pai: o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. No entanto, os conselhos paternos vão exatamente na direção contrária. Solicita a contenção dos arroubos da juventude, sugere ater-se às superficialidades da moda, e, na área do entretenimento, salutar é praticar o brilhar, o voltarete, o dominó e o whist. Estar perto de personalidades importantes, além de frequentar ambientes refinados, são estratégias de valiosas. Mas, sem se comprometer, sem causar alvoroço, sem chamar a atenção para os extremismos. Como as trivialidades são o tempero das conversas sociais no trabalho, nas festas ou com os amigos: vai ali falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer cousa. Nesses encontros, uma questão fundamental é o cuidado no uso do vocabulário: há que ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim... Mas sempre atento a uma singularidade: o adjetivo é alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. Deve-se afastar dos substantivos, das coisas concretas, dos horrores da vida.       

Pedagogicamente, o pai destaca: Melhor do que tudo isso, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustradas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. Por isso convém, nas mais diversas circunstâncias, para compor uma camada de verniz intelectual, citar alguns brocados latinos ou aludir a alguma figura mitológica. Com esse proceder estabelece-se a arte difícil de pensar o pensado (uma forma de fugir dos assuntos complicados, que exigem uma opinião comprometedora).  

Quando o pai faz a apologia da publicidade, a arte de conquistar a simpatia e o carinho das pessoas, instrui que é de bom-tom presentear com pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, cousas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. Ou seja, está propondo que a escalada do sucesso passa por ações inócuas, porém emocionalmente eficazes. Em casos mais expressivos, deve-se convidar os amigos e camaradas para algum jantar. Esse tipo de benevolência chama a atenção: Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome antes os olhos do mundo. Em alguns momentos, cabe fazer chegar aos jornais alguma nota sobre os últimos acontecimentos (obviamente, redigida de próprio punho ou sob incumbência de algum amigo ou parente).   

São lições da mais alta sabedoria para sobreviver em um mundo competitivo e pouco atento às artimanhas de quem nada acrescenta, mas que aparenta ser um espécime da mais fina estampa. Aos que perseveram nessa tarefa longa e muitas vezes estafante, que é obter a distinção social, arremata, dizendo ao filho: (...) felizes os que chegam a entrar na terra prometida! Os que lá não penetram, engole-os a obscuridade. Mas os que triunfam! E tu triunfarás, crê-me. Verás cair as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas.   

No momento em que a política for uma possibilidade, há que se tomar certo cuidado: Toda questão é não infringir as regras. Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano. Os partidos são molduras e nada mais que isso. Por isso, na escolha dos discursos, tens à escolha: – ou os negócios miúdos, ou a metafísica política, mas prefere a metafísica. (...) Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforges da memória. 

Uma última lição: Somente não deves empregar a ironia, esse movimento de canto de boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios.

Ao se despedir do filho, o pai arremata a conversa de forma lapidar: Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de Machiavelli.

Na arte de iludir, nenhuma tática pode ser desprezada, todos os artifícios são válidos. Em diversos momentos, o pai salienta que a regra de ouro da notoriedade social está em impedir que as pessoas (inclusive o filho) possam pensar por conta própria. As banalidades, os clichês, os pequenos subornos – com essas armas institui-se o diversionismo, momento ideal para que, através da chalaça, tudo se mostre divertido, apenas uma grande brincadeira. Sic transit gloria mundi.  


Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908).

P.S: A ironia, esse chicote que estala no lombo dos idiotas, é uma das marcas registradas do Machado de Assis. Quem não entender essa chave de leitura, deve dispensar a Teoria do Medalhão e, quiçá, se dedicar aos livros de autoajuda. 

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