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quinta-feira, 10 de julho de 2025

A OBRA LITERÁRIA E O ESCRITOR (texto modificado)

 

Cena do filme Première Année (Primeiro Ano), dirigido por Thomas Lilti, 2018. 

Em literatura, é pecado indesculpável misturar a obra literária e o escritor. Queria escrever autor, mas diversos teóricos (Roland Barthes e Michel Foucault iniciaram a confusão) sentiram prazer em matar o autor, então... (e, para não tumultuar o meio de campo, devemos deixar essa discussão para depois). De qualquer forma, o que precisa ficar claro é que a figura física daquele que escreve não pode (ou não deve) ser comparada com o texto publicado.

Explico. Ezra Pound, Louis-Ferdinand Céline e Pierre Drieu de La Rochelle eram fascistas. No entanto, escreveram romances e estudos teóricos de importância fundamental para a literatura. Recusar, ou melhor, cancelar esses trabalhos significa ignorar que o(a) escritor(a) é, em primeira instância, um ser humano – portanto, passível de deslizes éticos e morais. Decretar juízo de valor sobre a história pessoal do(a) sujeito(a) constitui um rebaixamento inapropriado, pois quer medir a qualidade literária com a régua do politicamente correto.     

William Burroughs matou a esposa acidentalmente – o filósofo Louis Althusser também fez isso; Ernest Hemingway (Prêmio Nobel de Literatura, 1954) e Charles Bukowski, além de alcoólatras, eram machistas; Vidiadhar Surajprasad Naipaul (Prêmio Nobel de Literatura, 2001) era uma pessoa detestável sob diversos aspectos; Dostoiévski, além de alcoólatra, tinha problemas com jogos de cartas e roleta; Monteiro Lobato era racista; O Marquês de Sade era maníaco sexual; Philip K. Dick sofria de esquizofrenia; James Joyce costumava pedir dinheiro emprestado e nunca devolvia; Anne Sexton, Sylvia Plath, Virgínia Woolf e Alejandra Pizarnik eram depressivas e se suicidaram; Jack Kerouac era viciado em anfetaminas; a inimizade entre os irmãos Heinrich e Thomas Mann (Prêmio Nobel de Literatura, 1929), Lawrence e Gerald Durrell ultrapassava as fronteiras do bom comportamento.

A lista dos(as) escritores(as) “defeituosos” se prolonga na direção do infinito. Mas nenhum desses desvios de conduta desmerece o trabalho literário. Deixar de ler um livro por qualquer motivo que não seja as deficiências do próprio livro constitui um sacrilégio e uma prova cabal de miséria intelectual.

As áreas que podem determinar a qualidade de um texto são, em última instância, a crítica literária e o gosto pessoal. Ao lado dos critérios técnicos (que podem estabelecer um grau de avaliação para os inúmeros elementos que compõem a obra), as preferências do leitor ajudam a determinar se uma narrativa deve ou não integrar o cânone. Mas todos esses instrumentos de análise são subjetivos e podem ser contestados a qualquer momento. A literatura não quer estabelecer algum tipo de ordem definitiva (melhor ou pior) ou garantir que o leitor não terá decepções; o que ela almeja é o constante diálogo entre o(s) livro(s) e o(s) leitor(es). Disso deve resultar a fruição do texto. Elementos externos, como curiosidades, histórias paralelas e a vida pessoal do(a) escritor(a), não representam um acréscimo ou um demérito na produção literária.

O leitor se apaixona pelo livro – o escritor é apenas um instrumento dessa ação.