![]() |
Cena do filme Première Année (Primeiro Ano), dirigido por Thomas Lilti, 2018. |
Em literatura, é pecado indesculpável
misturar a obra literária e o escritor. Queria escrever autor, mas diversos
teóricos (Roland Barthes e Michel Foucault iniciaram a confusão) sentiram
prazer em matar o autor, então... (e, para não tumultuar o meio de campo,
devemos deixar essa discussão para depois). De qualquer forma, o que precisa
ficar claro é que a figura física daquele que escreve não pode (ou não deve)
ser comparada com o texto publicado.
Explico. Ezra Pound, Louis-Ferdinand
Céline e Pierre Drieu de La Rochelle eram fascistas. No entanto, escreveram
romances e estudos teóricos de importância fundamental para a literatura.
Recusar, ou melhor, cancelar esses trabalhos significa ignorar
que o(a) escritor(a) é, em primeira instância, um ser humano – portanto,
passível de deslizes éticos e morais. Decretar juízo de valor sobre a história
pessoal do(a) sujeito(a) constitui um rebaixamento inapropriado, pois quer
medir a qualidade literária com a régua do politicamente
correto.
William Burroughs matou a esposa
acidentalmente – o filósofo Louis Althusser também fez isso; Ernest Hemingway
(Prêmio Nobel de Literatura, 1954) e Charles Bukowski, além de alcoólatras,
eram machistas; Vidiadhar Surajprasad Naipaul (Prêmio Nobel de Literatura,
2001) era uma pessoa detestável sob diversos aspectos; Dostoiévski, além de
alcoólatra, tinha problemas com jogos de cartas e roleta; Monteiro Lobato era
racista; O Marquês de Sade era maníaco sexual; Philip K. Dick sofria de
esquizofrenia; James Joyce costumava pedir dinheiro emprestado e nunca
devolvia; Anne Sexton, Sylvia Plath, Virgínia Woolf e Alejandra Pizarnik eram
depressivas e se suicidaram; Jack Kerouac era viciado em
anfetaminas; a inimizade entre os irmãos Heinrich e Thomas Mann (Prêmio
Nobel de Literatura, 1929), Lawrence e Gerald Durrell ultrapassava as
fronteiras do bom comportamento.
A lista dos(as) escritores(as)
“defeituosos” se prolonga na direção do infinito. Mas nenhum desses desvios de
conduta desmerece o trabalho literário. Deixar de ler um livro por qualquer
motivo que não seja as deficiências do próprio livro constitui um sacrilégio e
uma prova cabal de miséria intelectual.
As áreas que podem determinar a
qualidade de um texto são, em última instância, a crítica literária e o gosto
pessoal. Ao lado dos critérios técnicos (que podem estabelecer um grau de
avaliação para os inúmeros elementos que compõem a obra), as preferências do
leitor ajudam a determinar se uma narrativa deve ou não integrar o cânone. Mas
todos esses instrumentos de análise são subjetivos e podem ser contestados a
qualquer momento. A literatura não quer estabelecer algum tipo de ordem
definitiva (melhor ou pior) ou garantir que o leitor não terá decepções; o que
ela almeja é o constante diálogo entre o(s) livro(s) e o(s) leitor(es). Disso
deve resultar a fruição do texto. Elementos externos, como curiosidades,
histórias paralelas e a vida pessoal do(a) escritor(a), não representam um
acréscimo ou um demérito na produção literária.
O leitor se apaixona pelo livro – o
escritor é apenas um instrumento dessa ação.