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sexta-feira, 22 de agosto de 2025

MORRENDO DE RIR

 


Encontrei em Morrendo de Rir (Editora Arquipélago, 2025), o livro de crônicas da Elvira Vigna (1947-2017), a afirmação clássica: não sorrio pras pessoas pra quem devia sorrir. Mais do que uma mot d’esprit, a frase (e suas variações) acena para uma formula comportamental – dessas que esbanjam bom comportamento, of course. E isso quer dizer, que em um mundo “ideal”, onde se deseja bife e cerveja, só nos servem um líquido com nome impronunciável e entrecôte. A vida é desencontro – talvez Papua-Nova Guiné seja o destino final.

(Se alguém estranhou o tom fora de tom do parágrafo acima, “até que nem tanto esotérico assim”, aconselho correr até a livraria mais próxima e comprar o livro da Elvira. Na leitura tudo – ou nada – se esclarecerá. Quer dizer...)  

Lá pelos idos da metade de 2010, troquei algumas mensagens pelas redes sociais com Elvira Vigna. Coisa pouca, que iniciou com um texto em que citei a importância de algumas escritoras (Elvira entre elas). Depois, escrevi uma resenha para O que deu para fazer em matéria de amor (que, salvo engano, ela não desgostou). No intervalo entre uma coisa e outra, ganhei dois livros autografados (Deixei ele lá e vim e Vitória Valentina). Foram instantes de alegria. E que agora estão se renovando com as crônicas de Elvira. Não sei o que outros leitores pensarão sobre o que ela pensava do mundo literário (“O que você acha da Flip?” “Um Simba Safari.”), sobre o que significa encontrar um ou outro leitor nas esquinas da vida, sobre “música de preto”, sobre o prazer de ficar no meio do caminho assistindo o ruminar melancólico de Mimoso, sobre o machismo (homem é um bicho que não tem ouvidos sintonizados para o comprimento de onda da voz feminina) e, last but not least, a importância das echarpes azul-turquesa. Talvez alguém não goste. Eu gostei. Inclusive das saraivadas de insultos (...mandei à merda. Mas de maneira fina porque sou fina. Quase sempre.).

 


O mundo é um moinho, sempre a triturar os sonhos, a exigir condutas exemplares – e Elvira era avessa a esses comportamentos de andorinhas que atravessam os continentes com regularidade. Seus rituais de beleza envolviam outros mistérios (os olhos úmidos de afeto). Por instinto, em lugar de carinho, preferia enfiar as unhas na vaidade alheia. E para que isso acontecesse, antes da standing ovation, multiplicava as sacanagens semânticas. Ou seja, a ironia e o sarcasmo desfilavam triunfantes nas entrelinhas, nos subtextos, nas referências nem sempre explícitas (choque de lucidez). Para decifrar tantos enigmas talvez fosse necessário frequentar um desses cursinhos pré-vestibular. Um pouco de Cultura (assim mesmo, com maiúscula) não faz mal a ninguém.

Estilista (escrevo esquisito, declara em exercício de autocritica), Elvira flertava com o anarquismo literário, coisa pouca, nada que entusiasmasse Kropotkin ou Bakunin, inclusive porque as doses de veneno nem sempre eram fatais.  Ela sabia que existe um (in)certo prazer em oferecer humor ácido para o povo satisfeito com pequenas mesquinharias. Mesmo que eles não entendam a essência da trama e do drama. Na verdade, é melhor que continuem na ignorância. O gozo fica delicioso.

A sinfonia, sob regência de Elvira, sempre mostrou muitos acordes dissonantes – é preciso ter ouvido afinado para perceber o tema que está sendo executado (sim, o trocadilho foi proposital). Depois, eu tive várias oportunidades de consertar minhas opções erradas e partir para um cotidiano de emoções, perigos, festas, gargalhadas de boca fechada – então, e ainda, uma de minhas invejas. Não aproveitei nenhuma. Mas se essa confissão sobre a recusa dos hábitos burgueses ainda não convenceu o leitor, basta ler um trecho da crônica sobre o showroom de moda: Arregimentei, como sempre, a Maria Helena, que, como sempre, não tinha nada para fazer e uma enorme vontade de fazer fosse lá o que fosse, e a minha prima. É uma prima muito útil porque é gerente de butique. Achei que seria a nossa bengala branca, o nosso cachorro labrador, com certeza saberia dizer alguma coisa a respeito do que veríamos, um comentário, um muxoxo, enfim algum tipo de ruído a respeito do que viria e eu não tinha a menor ideia do que viria. Nunca, nunquinha, ninguém usou – como Elvira – das palavras como se fossem lâminas, dessas que produzem/promovem cortes sangrentos.

Não é por acaso que as artes plásticas fazem parte da vida de Elvira – desenhar figuras e sentimentos com lápis 2B, 4B, 6B, ilustrações com muitos “bs”. Gosto de pintores, eles veem sempre coisas incríveis (...) um mundo completamente diferente desse, a gente é que não vê. Leonardo da Vinci, Vincent van Gogh, Amilcar de Castro e outros menos cotados – o sentimento em expansão, decifrar manchas na parede, cores destruindo o preto-e-branco daqueles que querem fiscalizar a vida alheia (cuidado redobrado, meninas, com os neoliberais!!!!).

É isso, o leitor não sabe o que virá ao virar cada uma das páginas de Morrendo de rir. Todas as crônicas são propostas de briga (Estou me convencendo, a cada dia, que o normal é o mau humor), mas sempre ligando lé com cré. Outdoor em letras garrafais avisando que o inimigo deve ficar alerta o tempo todo. Ele é o alvo, nunca estará a salvo.


Elvira Maria Vigna (1947-2017)


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