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sábado, 20 de setembro de 2025

O HIPOPÓTAMO

 


Em um tempo distante, antes do mundo ser o que Rodrigo entende como o mundo, aconteceram muitas coisas estranhas. Esse descompasso pode ser medido por sua pouca idade (sete, oito anos), pelas relações com os colegas na escola em São Paulo, pelas visitas aos avós em Porto Alegre, pelas inúmeras descobertas que a vida vai lhe apresentando a cada instante.  

São muitos os sinais de que algo não está bem. As crises nervosas da mãe, as marcas no braço da mãe (nove bolinhas espalhadas aleatoriamente do pulso até a metade do antebraço, pequenos círculos escurecidos e enrugados que mais parecem as pegadas de um hipopótamo em miniatura), a separação do pai e a mãe (um dia, muito tempo atrás, numa época tão remota quanto a dos dinossauros, aqueles dois continentes estiveram unidos), as perguntas recorrentes do pai sobre a mãe, os namorados da mãe.

Durante um período das férias, em Porto Alegre, Rodrigo e a mãe saem para comprar leite. Nesse momento a rotação da Terra é alterada, tudo adquire um outro andamento. Rodrigo demora um pouco para perceber, dá alguns passos sozinho até ouvir o estalo atrás de si. Vira e flagra a mãe imóvel, a barra da saia encharcada de leite, a garrafa quebrada rolando por baixo da gôndola. Ela tem a boca entreaberta, os braços jogados ao longo do corpo, o olhar fixo para o fundo do corredor, onde um funcionário etiqueta produtos e um velhinho de boina escolhe sabão em pó.

Essa cena, completamente incompreensível para o menino, gera uma mudança nas relações familiares que aos poucos se torna perceptível e começa a incomodar: quando voltam para São Paulo, as notas na escola despencam, o isolamento aumenta e nada parece fazer sentido. Sem conseguir explicar o que está acontecendo (inclusive porque ficou muito confuso quando viu uma conversa complicada entre o pai e a mãe), Rodrigo passa a ser outro – diferente daquele que se divertia com as histórias que o avô contava (inventava) sobre Winnetou. 

E assim, como se estivesse desenhando o percurso com traços que estão perdendo a nitidez, um pouco borrados, Rodrigo vai crescendo, vai descobrindo que ultrapassar a infância e mergulhar na adolescência – essa antecâmara da vida adulta – sempre será um processo doloroso.

A transição produz algumas compensações. A principal é a que proporciona (em lugar do isolamento e solidão) a possibilidade de abrir espaço para que Rodrigo adquira voz, e possa expressar todas as suas dúvidas e, ao mesmo tempo, exorcizar os seus fantasmas e os da mãe.  

A tempestade envolve o carro como um lençol azul. Por um momento nada parece se mover: o carro roda sem sair do lugar, a mãe dirige sem mexer um músculo; o próprio Rodrigo parece envolvido por uma casca fria e dura. Seria bom seguir assim, seria perfeito, estar dentro de algo mas fora do mundo, os dois boiando num presente puro, uma tarde infinita. Seria perfeito, mas o barulho do limpador o devolve à realidade, ao metralhar da chuva, aos carros que ultrapassam e buzinam ao redor, e embora olhe fixamente para a frente a mãe de certa forma também o observa, suas mãos agarradas ao volante o encaram, e seus braços, e as marcas em seus braços, e Rodrigo sente que poderia dizer alguma coisa, que esse seria um ótimo momento para começar a falar.

O narrador onisciente de O Hipopótamo (Chico Mattoso, Editora Todavia, 2025) conseguiu impor um tom lírico nessa espécie de bildungsroman (romance de formação), mas sem omitir o quanto é doloroso descobrir que o passado sempre cobra tributo ao presente. A história que uniu e separou os pais de Rodrigo é também uma parte da história do Brasil.

 

Chico Mattoso é o autor dos romances Longe de Ramiro (Editora 34, 2007) e Nunca vai embora (Editora Companhia das Letras, 2011).


sexta-feira, 5 de setembro de 2025

PAPAI

 


Os dez contos de Papai, de Emma Cline (Editora Intrínseca, 2025. Tradução: Marcello Lino) transitam pelo mal-estar, pelo desconforto. Todos os personagens estão deslocados – como se um imenso naufrágio os atingissem, a água subindo lentamente, a falta de ar se fazendo sentir, tudo ao redor desmoronando, a aflição de não encontrar saída para situações constrangedoras ou trágicas.   

Esse estranhamento está presente em todas as narrativas – que, de certa forma, tentam retratar a realidade familiar contemporânea: casais separados, traições conjugais, filhos que nunca correspondem à imagem que os pais projetaram, pais que perderam a conexão com os filhos, adultização de crianças. O inferno dentro de casa (mesmo para aqueles que vivem em locais separados).   

Embora sejam narrativas lineares (começo, meio e fim – nessa ordem), o que se destaca é a ação narrativa intermediária e o anticlímax nos desfechos (os conflitos nunca são resolvidos). Como se fosse consequência natural, quase todos os personagens se decepcionam.

As desavenças entre as gerações se manifestam, em What can you do with a general, como uma batalha não declarada, mas que é capaz de implodir sentimentos e ampliar as mágoas.

Richard, o pai ausente precisa ir até um colégio particular para conversar com o filho, que cometeu um ato violento (não nominado). O contraste entre os dois personagens estabelece o cerne de Northeast regional.  

Uma história banal, A babá, adquire contornos específicos na medida em que envolve terceiros – e que, com isso, têm as suas vidas modificadas, embora não ocorra nenhuma tragédia, apenas o desconforto ao hospedar a filha de uma amiga (que se envolveu sexualmente com o pai da criança que cuidava).

Tudo está envolto no incômodo. Em Arcádia, Peter vai morar na fazenda que pertence aos irmãos Otto e Heddy (sua namorada grávida). Os acontecimentos vão enredando-o de tal forma que só resta para Peter a resignação.

O filho de Friedman aborda uma situação embaraçosa: George, na companhia de um amigo, precisa assistir ao curta-metragem dirigido pelo filho (um desses sujeitos que está longe de corresponder à imagem que o seu pai sonhou como ideal para o filho).

A primeira vez que Emma Cline teve algum destaque no Brasil ocorreu quando a revista Granta em Língua Portuguesa (nº 1, Editora Tinta-da-China, maio de 2018) publicou Los Angeles. Uma mulher, que trabalha em uma fábrica de roupa intima feminina, vende – pela Internet – algumas peças usadas. A parafilia aparece de diversas formas e conduz a protagonista ao abismo das ilusões capitalistas. Um exemplo de como são complicados os caminhos do desejo.    

O melancólico A balada de Mackie Messer relata os desencontros entre três amigos. Mas, o pano de fundo mostra que o desequilíbrio transcende a questão econômica (que impacta todos os personagens) e se estende até os filhos e as (ex)companheiras. O mundo reconhecido como tal deixou de existir, tudo o que sobrou foram as lembranças de um tempo que não existe mais.    

Dois contos fogem do ordenamento geral. Em Menlo Park, um revisor é contratado para trabalhar em livro escrito por ghost-writer. Não demora muito para que ele coloque tudo a perder. No segundo, Marion, uma menina de 13 anos manifesta obsessão sexual por homem mais velho. Esse comportamento é observado ingenuamente por outra menina – que, aos 11 anos, não consegue entender direito o que está em jogo.

No último conto, I/S/L, a banalidade do mal está localizada em uma clínica de reabilitação. A presença de uma celebridade – acusada de importunação sexual – modifica comportamentos e cria uma atmosfera peculiar (embora transcorra em aparente normalidade).

A acidez que corrói cada uma das narrativas de Papai espelha o modo de vida contemporâneo – mistura de ansiedade, sexo e infelicidade. A decadência do Império, por maior que sejam as expectativas, está expressa, no final de cada dia, no medo de fracassar. Então, para aliviar as tensões, para tentar encontrar a utopia prometida pela sociedade de consumo (e que nunca será saciada), poucos conseguem resistir aos paraísos artificiais proporcionados por cocaína, barbitúricos e pornografia.


Emma Cline