Acontece. Muitas vezes. O leitor compra o livro e não o lê. Emparedado na estante, o volume fica hibernando por tempo indeterminado. Somente volta à vida por algum motivo aleatório. Foi esse o caso com a primeira edição de Kitchen, de Banana Yoshimoto (Editora Nova Fronteira, 1995. Tradução de Julieta Leite).
O lugar que eu mais gosto neste mundo é a cozinha, afirma Mikage Sakurai, protagonista da primeira narrativa (a segunda se chama Moonlight shadow). Com esse início, o texto poderia enveredar para algo relacionado com a gastronomia, aqueles dramas complicados de chef de cuisine, a luta por conseguir clientes, estrela Michelin e, fundamentalmente, superar a ansiedade e a loucura. Nada disso. Quer dizer, o mundo culinário está presente, mas não ocupa o primeiro plano. A questão principal tem outros sabores: afeto e luto. E isso está expresso com delicadeza e poesia.
Após o falecimento de sua avó (que a criou após a morte dos pais), Mikage vai morar com os Tanabe (Yuichi e Eriko) – pessoas que lhe eram completamente estranhas. São seis meses especiais em que a hóspede se sente acolhida. Em determinado momento, ela vai morar em outro lugar: naquele verão tinha-me dedicado a aprender sozinha a arte de cozinhar. O mundo adquire outro formato, na medida em que Mikage vai descobrindo sua verdadeira vocação profissional.
O retorno acontece quando Yuichi lhe comunica que Eriko foi assassinada. Essa reaproximação através da perda parece conduzir ao estágio que contesta a afirmação: Para nós dois, o outro era a pessoa mais próxima no mundo, o amigo insubstituível.
A voz de Mikage vai relatando as complicações existenciais, uma longa reflexão sobre o que significa estar sozinha no mundo, sem ter em quem se apoiar. É o sofrimento que envolve Yuichi que altera a ordem dos sentimentos de Mikage: Yuichi, não quero perder você. Nós dois, vivendo sozinhos, sempre vivemos sem pensar muito nisso, da forma mais indolor possível. Não podíamos fazer outra coisa: a morte, que na nossa idade não deveríamos ter conhecido tão de perto, era pesada demais para nós. Pode ser que no futuro, estando comigo, você passe por dores, dificuldades, problemas, mas, se você quiser, podemos construir uma vida complicada, mas mais feliz que uma vida solitária.
Não
é exatamente um happy end, mas indica que os dois jovens vão construir um
caminho menos triste.
Moonlight shadow é uma pequena novela que complementa o volume e que transita por algo que poderíamos chamar de sobrenatural. Os jovens Hitoshi e Yomiko morrem em acidente. Seus parceiros Satsuki e Hiiragi (irmão de Hitoshi e namorado de Yomiko) têm dificuldades para superar a morte.
A pessoa amada só devia morrer depois de uma longa vida. Perdi Hitoshi aos vinte anos, diz Satsuki, a narradora.
Em dado momento, quando Satsuki está bebendo chá enquanto olha para o rio que divide a cidade, surge em cena Urara, uma espécie de anjo da anunciação. É uma situação estranha, onde aparecer e desaparecer se torna a regra geral. No lugar onde morreu alguém que a gente amava, o tempo para por toda a eternidade.
Moonlight
shadow (inspirada na canção de Mike Oldfield) é uma narrativa sobre sonhos, conexões com a morte, tristeza e superação do passado – usando uma linguagem delicada, como se cada palavra fosse um dom
precioso, capaz de exprimir os sentimentos humanos.
P.S.:
Banana Yoshimoto é o pseudônimo que Mahoko Yoshimoto, em uma referência às flores
vermelhas da bananeira. É autora de Kitchen (Editora Nova Fronteira,
1995; Editora Estação Liberdade, 2025), Tsugumi (Editora Estação
Liberdade, 2015), e Doce Amanhã (Editora Estação Liberdade, 2024).