Páginas

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

MAR DA TRANQUILIDADE

 


Na face visível da Lua existe uma região composta por lava basáltica e que é denominada de Mare Tranquillitatis. O módulo lunar Eagle, da Apolo 11 (tripulado por Neil Alden Armstrong e Edwin Eugene “Buzz” Aldrin Jr.), foi o primeiro veículo espacial a pousar no local em 20 de julho de 1969.

No romance de ficção científica Mar da Tranquilidade, de Emily St. John Mandel (Editora Intrínseca, 2025. Tradução de Débora Landsberg), a área foi povoada por habitantes da Terra (três complexos residenciais), depois que a vida no planeta se tornou complicada (super população, descontrole ambiental). Como acontece em todos os empreendimentos imobiliários, um deles, com o passar do tempo, foi perdendo as suas características iniciais e se tornou um lugar decadente. Alguns dos personagens da narrativa moraram, em diferentes épocas, na Colônia dois.     

Os vários eixos narrativos de Mar da Tranquilidade estão unidos pelo conceito de viagem no tempo. Partes do romance ocorrem em diferentes locais (na Lua, na Terra), e em vários períodos cronológicos (1912, 1918, 1990, 2008, 2203, 2401). Esses deslocamentos temporais são o leitmotiv do livro.  

Um grupo de cientistas resolve investigar momentos de séculos diferentes [que] estão vazando uns nos outros. Para entender as razões do fenômeno, enviam Gaspery-Jacques Roberts ao passado. Entretanto, as viagens no tempo encerram um perigo: qualquer mudança – por mais insignificante que seja – pode alterar o fluxo histórico. Os acontecimentos como são conhecidos tomarão outro rumo e essas modificações, eventualmente, criarão situações catastróficas.

Gaspery-Jacques, irmão de Zoey (uma das coordenadoras do Instituto do Tempo), também é um personagem de Marienbad, romance escrito por Olive Llewellyn. Quando ele assume a posição de narrador, relata que visitou vários lugares, conheceu várias pessoas e, mais importante, descobriu o que aconteceu. Em cada uma das viagens temporais, ele se desdobra, se multiplica – e projeta, como se fosse a sombra de si mesmo, a figura literária do Doppelgänger.

Um nobre inglês exilado no Canadá, uma mulher que procura entender o desaparecimento de sua amiga, um compositor obscuro de música clássica, uma escritora em turnê de divulgação de livro. São esses personagens dispares que Gaspery-Jacques encontra em seus deslocamentos temporais. Todos eles precisam enfrentar as diversas dificuldades que envolvem o afeto: doença mental, pandemia, solidão, exílio, perda, luto. Nesse mar não há tranquilidade.  

Metáfora complexa da história humana, Mar da Tranquilidade utiliza-se de mundos alternativos para construir uma estrutura que contrasta com o determinismo cartesiano. A jornada de Gaspery-Jacques, que interfere no próprio destino e no de alguns personagens, mostra que é possível construir outra história, menos cruel, mais flexível. E isso, mais do que um ato de rebeldia contra o sistema, configura um exercício de liberdade.   

Nas cenas finais há o encaixe, aquele momento em que a amarração dos fatos narrativos se completa. Tudo passa a ter explicação (ou não). Mas isso obriga a releitura de algumas páginas, pois o desfecho da trama se parece como um quebra-cabeças cuja imagem revelada ao leitor não corresponde às expectativas.

 

Emily St. John Mandel

Emily St. John Mandel também escreveu o excelente Estação Onze (Editora Intrínseca, 2015).    


Nenhum comentário:

Postar um comentário