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quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

CARTA ABERTA AO SÉRGIO FANTINI

Sérgio,

Recebi teu livro (Silas) faz algum tempo, mais de seis meses. Lembro que o li quase que imediatamente. Se eu fosse o sujeito organizado que gosto de fingir que sou, deveria ter feito algum comentário na primeira oportunidade, logo depois de ter recebido o livro. O problema é que costumo deixar tudo para depois – que é uma forma confortável de ser irresponsável. Além disso, Sérgio, não posso negar que o fantasma de Macunaíma gosta de passar longas e intermináveis temporadas aqui em casa. O tempo escorre, a inércia faz aniversário e eu continuo lendo um livro atrás do outro, sem me incomodar com aqueles que ficaram para trás.

Semana passada, ao revirar as estantes, tirar o pó de alguns livros, separar outros para um artigo que sonho escrever daqui a alguns dias, percebi que estava em débito contigo. Como reparar tamanha falha? Não sei. Aliás, também não sabia onde estava o teu livro. Nas estantes não o encontrei. Um amigo costuma dizer que os livros adoram se esconder e que, quando os estamos procurando, são eles que nos encontram − nunca o contrário. Fui procurar lá no quarto. Costumo, de forma idiossincrática, separar aqueles que merecem atenção dos que ainda não foram lidos. Essa foi a chance de mudar um pouco a história, de resolver o mistério. Não posso tê−lo perdido, repeti baixinho, várias vezes, como se essa frase fosse um mantra, como se fosse escudo suficiente para afastar os maus espíritos.

Salvo pelo gongo. Encontrei o volume. A capa, coloridíssima, que me lembra, por algum motivo, Roy Lichtenstein, o pintor pop estadunidense, é um belo cartão de visitas. Aliás, queria dizer (escrever?) uma bobagem. Mais uma. Posso? Lá vou eu: teu livro tem potencial para ser adaptado para o formato graphic novel. O engraçado, Sérgio, é que as expressões romance gráfico, história em quadrinho e gibi estão fora de moda.

Arrisco outro palpite: a modernidade odeia a língua portuguesa. Em qualquer situação possível, todos, pois é, todos os militantes culturais preferem usar alguma palavra da língua inglesa. Triste sina a dos escrivinhadores nacionais: condenados ao século passado – tempo em que a língua nacional era outra, muito diferente dessa que está sendo usada pela comunidade descolada. A norma culta e o coloquial foram substituídos por alguma forma de comunicação que eu ainda não sei o que é – e que, obviamente, não domino. Todos os dias percebo que fiquei anacrônico. E isso não é a melhor parte do que me cabe nesse latifúndio.   

Tergiversei. Mais uma vez. Essa é outra qualidade que podes encontrar no meu cultivar.

Sérgio, de vez em sempre faço esforço colossal para tentar omitir o que deveria ser claro e pedagógico. Neste caso, o do teu livro, fiz uma viagem ao redor do nada antes de conseguir dizer que seria interessante ver imagem e texto conjugados em unidade, a carne e o espírito, se me perdoa a metáfora cristã, igualmente fora de moda. Algumas cenas estão delineadas com um tipo de linguagem que imagino, mesmo sem ter certeza, própria para amalgamar palavra e desenho.

Estou errado? Posso estar. A crítica cultural, graças aos deuses que a protegem (ou a amaldiçoam), está repleta de equívocos. Alguns grosseiros. Outros, alegres desatinos. Coisas do destino. Passeios emocionais, como esse transitar de Silas pelas ruas das cidades, pelos bares, consumindo pedaços de carne, sentindo as dores tatuadas na pele.

Como cabe ao imaginário composto no fin−de−siècle, a solidão e o mau−humor de Mário, o dono de um dos botecos de Diz Xis, projetam o futuro. A vida costuma cobrar caro pelas fugas. Pelas decisões. Poucos conseguem perceber os sinais que o destino vai espalhando ao redor. E isso é engraçado. Ou farsesco. O que for de agrado do freguês.

Historicamente, desde os tempos coloniais, quando o barroco plantou as sementes das narrativas esparramadas, o penduricalho se tornou uma característica importante da literatura brasileira. Atualmente, não falta quem use da desculpa de que esse recurso é necessário para atingir a totalidade. Bobagem. Contar uma história não precisa de trezentas páginas descritivas. Graciliano Ramos e Ernest Hemingway continuam atualíssimos – só não vê quem não quer ver. Teu texto (linguagem enxuta, exata, que não deixa espaço para os adjetivos) provavelmente bebeu nessas fontes magistrais. Ganhou o leitor.

Simultaneamente, como compete a um artesão da palavra, você não tem pressa. As palavras escorrem pelas páginas produzindo imagens de grande densidade poética – mesmo quando apontam para o páthos (paixão, sofrimento, doença). Em cena, encenando algum tipo de ópera bufa, aqueles personagens que podemos qualificar como gente fina (traficantes, prostitutas, bêbados, a escória do lado menos edulcorado do mundo). Nenhum problema. Nós (eu, você, o leitor) somos eles.

Nos dois últimos contos, Silas, 30 do 2° Tempo e Silas, Velho, o que vale é o ritmo. Alternando diálogos cortantes com um pouco de humor difícil de ser decifrado, as narrativas fluem com segurança, sem medo de cortar o pulso diante do público, sem esperar aplauso. Poucos conseguem essa concisão, essa precisão. 

Por fim, ou enfim, queria pedir desculpas por ter demorado tanto tempo para escrever alguma coisa sobre teu livro.

Abraços,

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O ÓDIO EM QUARENTA PORÇÕES

Se você odeia alguém, é porque odeia alguma coisa nele que faz parte de você. O que não faz parte de nós não nos perturba. (Herman Hesse)

Poucas pessoas podem ser felizes a menos que odeiem alguma pessoa, nação ou crença. (Bertrand Russel)

Ofender é o meu prazer. Adoro ser odiado. (Edmond Rostand)

O amor e o ódio são irmãos. Mas o ódio é um irmão bastardo. (Vergílio Ferreira)

As aparências enganam / aos que odeiam e aos que amam / porque o amor e o ódio / se irmanam na fogueira das paixões. (Tunai)

Já vivi o suficiente para ver que a diferença provoca o ódio. (Stendhal)

Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas. (Machado de Assis)

Para ódio e amor que dói, amanhã não é consolo. (Guimarães Rosa)

Não, eu não odeio as pessoas. Só prefiro quando elas não estão por perto. (Charles Bukowski)

A grande arte exige amor e ódio. (Bertolt Brecht)

O que precisamos é de ódio. Dele nascerão as nossas idéias. (Jean Genet)

O ódio tem melhor memória do que o amor. (Honoré de Balzac)

Como é duro odiar os que se gostaria de amar. (Voltaire)

Qualquer escolar pode amar como um idiota. Mas odiar, meu filho, é uma arte. (Ogden Nash)

O ódio é a vingança do covarde. (George Bernard Shaw)

Homens ofendem por medo ou por ódio. (Maquiavel)

O obséquio produz amigos; a verdade, ódio. (Terêncio)

Quando o sangue respira o ódio, não pode dissimular-se. (Sêneca)

Deve-se temer mais o amor de uma mulher, do que o ódio de um homem. (Sócrates)

Todo dia leio cuidadosamente os avisos fúnebres dos jornais; às vezes a gente tem surpresas agradabilíssimas. (Millôr Fernandes)

Sou livre de qualquer preconceito. Odeio todo mundo, indistintamente. (W. C. Fields)

Toda pessoa normal se sente tentada, de vez em quando, a cuspir nas mãos, içar a bandeira negra e sair por aí cortando gargantas. (H. L. Mencken)

Não levo ninguém a sério o bastante para odiá−lo. (Paulo Francis)

É melhor ser odiado pelo que você é do que amado pelo que você não é. (André Gide)

Deve−se perdoar os inimigos, mas não antes que eles sejam enforcados. (Heinrich Heine)

Do ódio à amizade a distância é menor que do ódio à antipatia. (Jean de La Bruyére)

Não há nada mais tenaz que um bom ódio. (Machado de Assis)

Creio no riso e nas lágrimas como antídotos contra o ódio e o terror. (Charles Chaplin)

O oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença. (Érico Veríssimo)

Um pouco de desprezo economiza bastante ódio. (Jules Renard)

A ausência tanto é um remédio contra o ódio como uma arma contra o amor. (Jean de La Fontaine)

 Quanto menor é o coração, mais ódio carrega. (Vitor Hugo)

O amor pode viver de recordações; o ódio requer realidades presentes. (Miguel de Unamuno)

O ódio sem desejo de vingança é um grão caído sobre o granito. (Honoré de Balzac)

O olhar de quem odeia é mais penetrante do que o olhar de quem ama. (Leonardo da Vinci)

A inveja é mais irreconciliável do que o ódio. (François de La Rochefoucauld)

Há homens cujo ódio nos glorifica. (Denis Diderot)

Amor e ódio são os dois mais poderosos afetos da vontade humana. (Padre Antonio Vieira)

O afeto ou o ódio mudam a face da justiça. (Blaise Pascal)

O ódio é sempre mais clarividente e mais engenhoso do que a amizade. (Pierre Laclos)

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O SUBSTITUTO

Ele só ferra as coisas deles. E as mulheres choram por mim no funeral porque eu não estou mais lá para comê−las sem camisinha e essas merdas. E meus parceiros vão sumindo na fumaça da maconha e da merda toda. (trecho de redação com o tema "o que poderia ser dito no seu funeral", escrita por um dos alunos da turma de inglês 11A, do professor Henry Barthes).


O imaginário contemporâneo está povoado pela imagem edulcorada de que os professores são heróis e que se esforçam – de todas as maneiras possíveis − para combater a ignorância, o preconceito e a tirania. Continuar na profissão, apesar dos péssimos salários, reforça o estereótipo.

Alguns filmes, como Ao Mestre Com Carinho (To Sir With Love. Dir. James Clavell, 1967), Sociedade dos Poetas Mortos (Dead Poets Society. Dir. Peter Weil, 1989) e O Clube do Imperador (The Emperor’s Club. Dir. Michael Hoffman, 2002), entre outros, preocupados com as lições extraídas dos temas pedagógicos ou éticos, raramente abordam o cerne da relação professor−aluno. Há pouco interesse em transcender o que está contido Entre os Muros da Escola (Entre les murs. Dir. Laurent Cantet, 2008). E, para desespero geral, há muitas outras coisas lá fora.

O Substituto (Detachment. Dir. Tony Kaye, 2011), recentemente lançado em DVD e Blue−Ray, está na contramão dos filmes comportados. Misturando artes gráficas (desenho animado) com o contexto relatado (aproveitando que esse hibridismo narrativo, associado com a crítica comportamental, produz estragos consideráveis), avança no território quase inexplorado das neuroses que afligem professores e alunos.

Espectadores acostumados com o lirismo flor−de−laranjeira da ideologia burguesa reagem mal ao diversos depoimentos em primeira pessoa do professor Henry Barthes (interpretado por Adrien Brody). Quebrando a linearidade narrativa, ele não se omite e faz um relato cruel sobre a dor que envolve os relacionamentos afetivos. Sem concessões ao padrão construído pelo enquadramento social, o filme mistura a repugnância esterilizadora e anestésica do politicamente correto, a inutilidade dos aconselhamentos psicológicos e o ódio adensado pela luta de classes, pela alienação e pelo preconceito (étnico, sexual, econômico).

Henry Barthes, professor de língua inglesa, é um homem desmontável. Tanto que a sua história pessoal está estruturada na constante troca de escolas. Evita a estabilidade. Nega compromissos. Sempre que possível, se esquiva de qualquer sentimento que envolva algum tipo de contato. Recusa conhecer as histórias pessoais e os sentimentos daqueles que temporariamente atravessam o seu caminho.

Do que foge Henry Barthes? Solidão, relações amorosas esfareladas, problemas financeiros. Na bagagem pesada que precisa carregar, se destacam a história familiar complicada, o avô doente, misérias de diversas espécies.

Henry está ciente que todas as escolas se assemelham a manicômios − as péssimas condições de trabalho e a agressividade dos alunos confirmam a tese. Mas, isso é pouco. Há algo mais. Para alguns professores, o verdadeiro perigo consiste em enfrentar a vida − horror que se instala logo em seguida ao término das aulas. É quase impossível evitar o afogamento nesse mar de angústia.

Carol Dearden, a diretora da escola, impotente ao poder avassalador da política distrital; Érica Lewis, a jovem prostituta que faz ponto na esquina; Meredith, a aluna talentosa e discriminada (de várias maneiras); Sarah Madison, a professora escrupulosa – cada uma dessas mulheres, de uma forma ou de outra, contribuiu para alterar a rota de colisão com o desespero que está tomando conta da vida de Henry Barthes.

Quando Meredith se suicida em público, comprovando que a juventude está se despedaçando por falta de atenção, de carinho e de compreensão, Henry consegue perceber que a tragédia não mais pode ser revertida. E que ele também está contribuindo para negar o problema.

Ao final do filme, encenando uma metáfora pouco comum, embora bastante funcional, Henry Barthes lê para os alunos um trecho do conto A Queda da Casa de Usher, de Edgar Allan Poe:  

Durante um dia inteiro, silencioso, sombrio e monótono, na estação outonal do ano, quando as nuvens opressivas e baixas dos céus, eu tinha estado passeando a cavalo, através de uma parte singularmente árida da região; e finalmente encontrei−me, quando as sombras do crepúsculo já se avizinhavam , à vista da melancólica Casa de Usher. Não sei como descrever, porém, desde que pela primeira vez contemplei o edifício, uma sensação de tristeza insuportável permeou meu espírito. Digo que era insuportável, porque o sentimento não era aliviado por qualquer dessas impressões meio agradáveis, porque estão cheias de poesia, com as quais a mente recebe até mesmo as imagens naturais mais lúgubres, desoladas e terríveis.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

A NÃO-FICÇÃO DE DAVID FOSTER WALLACE


A comunidade literária contemporânea adora ressuscitar alguns cadáveres putrefatos.

Essa brincadeira (também conhecida como o milagre de transformar imagens sem valor em pilhas de moedinhas valiosissimas) agrada a todos − o morto, os responsáveis pelo espólio, alguns professores de literatura (carregando quilométrico séquito de estudantes), os editores, os tradutores e os insetos necromantes (ou será necrófilos?).

O último zumbi da literatura contemporânea, David Foster Wallace, está fazendo enorme sucesso nos guetos modernosos. Embora os 23 contos de Breves Entrevistas com Homens Hediondos, volume publicado no Brasil em 2005, estejam encalhados nas estantes dos piores sebos, vá lá, mofando nos saldos dos melhores sebos, jornais e revistas (off and on−line) não economizam espaço para glorificar o morto−vivo, que, entre outras gracinhas, já foi apelidado de "Kurt Cobain das letras". Seria engraçado não fosse muito ridículo.

A recente publicação comercial de alguns textos de não−ficção de Wallace, em um volume de título engraçado, Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, reacendeu o brilho dos olhos eternamente ávidos do deus mercado – confortavelmente instalado na proa da caravela, o marujo gritou: "Dinheiro à vista!"

Graforréico, Wallace não se constrangia em encenar a brincadeira infinita − ápice inventivo de um escritor que teve dificuldades para entender as dificuldades da vida. Em Uma Coisa Supostamente Divertida que Eu Nunca Mais Vou Fazer, crônica de "apenas" 125 páginas, descreve uma viagem de sete dias em um transatlântico. Misturando fofocas de terceira classe com detalhes técnicos que não possuem o mínimo interesse na produção de um texto objetivo, Wallace espicha a narrativa até os limites da exaustão. Essa obsessão enciclopédica pela descrição dos detalhes (também evidenciada no texto homônimo ao título do volume) irrita e, ao mesmo tempo, provoca. Que outras barbaridades ele pretende relatar?, pergunta o leitor, sem saber se David Foster Wallace quer construir a imagem total do objeto de sua escritura ou destruir a paciência de quem se aventura nesse tipo de leitura.

Não bastasse a falta de objetividade, o cara adora salpicar os textos com notas de rodapé – recurso que fragmenta a leitura, amplia a confusão e exige atenção redobrada. A vantagem dessa insanidade é simples: evita atrapalhar o fluxo narrativo e abre espaço paralelo para comentários pessoais, observações irônicas, diversões inconsequentes. Nem sempre isso acontece. Um exemplo clássico do uso desse artifício está nas cinco páginas, repito, cinco páginas absolutamente dispensáveis que constituem a nota de rodapé número 32, em Uma Coisa Supostamente Divertida que Eu Nunca Mais Vou Fazer. O que deveria ser um recurso literário criativo não passa de non-sense.

Dizem os incensadores que David Foster Wallace era um sujeito divertido, desses que conseguem manobrar com competência a ironia, a metalinguagem e a paródia. Talvez fosse. Há controvérsias. No trivial variado é apenas chato. A exceção é a crítica de costumes, onde consegue delinear com precisão o mau gosto da classe média e o pedantismo dos ricos. Mesmo assim, como os seus textos são muito longos, o tédio logo se faz presente. Em compensação, em artigos menores, como Alguns Comentários Sobre a Graça de Kafka dos Quais Provavelmente Não se Omitiu o Bastante ou em Federer Como Experiência Religiosa consegue se aproximar da genialidade.

David Foster Wallace, que sofria de grave depressão, suicidou-se em 12 de setembro de 2008. Tinha 46 anos. Em vida publicou dois romances (The Broom of the System, em 1987, e Infinite Jest, em 1996), três coletâneas de contos (Girl with Curious Hair, em 1989, Brief Interviews with Hideous Men, em 1999, e Oblivion: Stories, em 2004), além de diversos livros de não-ficção. Postumamente, em 2011, foi publicado o romance inacabado The Pale King.

Jonathan Franzen nunca economizou elogios a David Foster Wallace. Em Mais Distante, ensaio que consta do livro Como Ficar Sozinho, relata uma história aventureira: despejar as cinzas do amigo morto na ilha de Masafuera, situada em um arquipélago na costa central do Chile.