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quinta-feira, 12 de junho de 2014

O HOMEM QUE AMAVA OS CACHORROS



A história representada e a história escrita ainda correm por linhas paralelas, mas estão tendendo a juntar-se. (Edmund Wilson, in Rumo à Estação Finlândia)

Liev Davidovitch Bronstein, conhecido como Leon Trótski, foi, simultaneamente, profeta da revolução russa e poeta do socialismo. Com uma biografia repleta de aventuras e selvagerias, ainda é uma das figuras emblemáticas da história contemporânea – setenta e quatro anos após sua trágica morte, na Cidade do México. Sobrevivente dos horrores do cárcere czarista, amargou o exílio e a pobreza. Isso não o impediu de lutar pela construção de uma sociedade igualitária mundial. Em um dos momentos cruciais da história russa, quando Vladimir Ilyitch Uliánov (Lenin), em 1918, solicitou sua ajuda, organizou o Exército Vermelho. Sem qualquer tipo de crise de consciência ou escrúpulos humanitários, destruiu o Exército Branco e estruturou as bases do futuro Estado Soviético. Como observou o poeta Paulo Leminski, na biografia que escreveu sobre Liev Davidovitch, em Trótski, a revolução vai ser uma paixão intelectual, uma certeza lógica, uma convicção feita de ferro em brasa.

Por diversos motivos, seja por ter feito uma leitura política equivocada, seja por vaidade intelectual (estava convencido de que era mais inteligente do que os outros revolucionários), Trótski não conseguiu impedir – depois da morte de Lenin, em 1924 – que Liev Borisovitch Kamenev, Gregori Evseievitch Zinoviev (nascido Ovsei-Gershon Aronovitch Radomyslsky) e Nikolai Ivanovitch Bukharin se tornassem aliados políticos do arrivista Iossif Vissarionovitch Djugashvili, também chamado de Josef Stalin. O georgiano, adepto da força bruta, depois de controlar o Politítchedkoe Byurô (Politburo), assumiu o poder. O que se seguiu é um exemplo clássico de lição histórica: as revoluções só se tornam completas quando devoram os seus filhos mais queridos. Para não ser transformado em mártir, Trótski precisou seguir para um novo exílio, em 1929. Aqueles que o traíram, Kamenev, Zinoviev e Bukharin, não tiveram a mesma sorte. Depois de processos judiciais fraudulentos, foram expurgados do poder e fuzilados – em 1936. Quatro anos depois, vitima de uma trama diabólica, Trótski foi assassinado na Cidade do México.

Leonardo Padura
O romance histórico O Homem que Amava os Cachorros, do cubano Leonardo Padura, retoma, ficcionalmente, ou melhor, arqueologicamente, a história que é comum a alguns dos personagens mais importantes do século XX.  

Tour de force narrativo, o livro procura manter-se longe do maniqueísmo político e o mais próximo possível da essência literária. Oscilando entre a descrição da brutalidade stalinista e do fanatismo trotskista, consegue se esquivar das peças publicitárias. Para o bem e para o mal, Stalin e Trótski eram faces de uma mesma moeda. E, se os papeis fossem invertidos, provavelmente muito pouco teria mudado na história russa – embora Liev Davidovitch fosse um pouco, não muito, mais humano do que Iossif Vissarionovitch.  

Liev Davidovitch Bronstein
O texto está dividido em vários planos narrativos. O principal, focalizado na figura do escritor cubano Iván Cárdenas Maturell, serve de epicentro para que outros personagens possam aflorar. Um sujeito, que diz se chamar Jaime López, faz um relato impressionante. E o faz de tal forma que deixa Iván ansioso por ouvir cada capítulo dessa narrativa. Ao mesmo tempo, por vias transversas, não-verbais, parece fornecer autorização para que o cubano possa expor para outras pessoas o que está ouvindo. Ou seja, quer que Iván transforme tudo o que ele está dizendo em um livro. Para que isso se complete, antes de ser devorado por um câncer devastador, Jaime López envia ao escritor uma longa carta, mais de cinquenta folhas escritas à mão numa caligrafia muito espremida, quase infantil e, depois, uma cópia do livro que foi escrito por Luis Mercader. 

Ao mesmo tempo em que muitas coisas se esclarecem, outras tantas se misturam com a perplexidade.  Iván não consegue compreender como foi que se tornou possível a sua participação nessa confusão: Como podia alguém escapar da história para ir passear com dois cães e um cigarro na boca por uma praia de minha realidade?

A resposta não existe. Mas, a história que Iván recebeu de presente envolve um dos personagens mais estranhos da política mundial: Jaime Ramón Mercader del Rio Hernández (aliás Adriano, aliás Jacques Mornard Vandendreschs, aliás Frank Jacson, aliás Jaime López, aliás Ramón Pavlovitch López, além de outros codinomes). Combatente republicano na Guerra Civil de Espanha, Ramón foi um espectro camaleônico, um fanático ideológico. Recrutado pelos russos para se tornar um agente de elite do Narodnyy Komissariat Vnutrennikh Del – NKVD (Comissariado do Povo para Assuntos Internos), depois de intensivo treinamento, recebeu uma missão muito especial: eliminar Trótski.

Jaime Ramón Mercader del Rio Hernández
Após Stalin assumir o controle estatal, a vida de Trótski se transforma em um martírio. Simultaneamente à penúria (econômica, emocional) produzida por um novo exílio, ainda há uma lenta fila de homens mortos. Dolorosas são as mortes dos filhos: Nina Nevelson e Zinaida (Zina) Volkova, filhas de Alexandra Lvovna Sokolovskaia, Liev (Liova) Lvovitch Sedov e Sergei (Serioja) Lvovitch Sedov, filhos de Natalia Ivanovna Sedova. 

Dos familiares mais próximos, somente Natalia Ivanovna Sedova (a viúva), Vsevolod (Sieva, Esteban) Platonovitch Volkov (filho de Zina) e Julia Sergeevna Rubinshtein (filha de Sergei), conseguem escapar do massacre promovido pelos stalinistas. Não satisfeito em secar todas as fontes vitais que alimentavam a família de Liev Davidovitch, centenas de intelectuais trotskistas foram mortos. Essa carnificina não se mostra suficiente. Stalin quer mais. Muito mais. Quer a morte de Trótski – que, por algum mecanismo psicológico, causa grande mal-estar ao senhor de Moscou. 

Iossif Vissarionovitch Djugashvili
A História, assim como a Medusa, costuma destruir aqueles que ousam olhar diretamente para o seu rosto. Algum dia, (...), se reconhecerá que foram os erros dos revolucionários, mais que o empenho dos imperialistas, que atrasaram as grandes mudanças da sociedade humana, percebe o personagem Liev Davidovitch em um dos momentos cruciais da narrativa. No mesmo sentido, a voz do narrador interrompe a descrição dos fatos históricos para concluir que Muitos, (...), se veriam obrigados a reconhecer que o stalinismo não tinha suas raízes no atraso da Rússia, nem no ambiente imperialista hostil, como chegou a ser dito, mas na incapacidade do proletariado de se transformar em classe governante. Teria que admitir também que a União Soviética não fora mais do que a precursora de um novo sistema de exploração e que a sua estrutura política tinha inevitavelmente de gerar uma nova ditadura, maquiada, quando muito, com outra retórica...

Política é retórica, é discurso, é aparência, é teatro – como tudo na vida. Embora, em alguns momentos, a energia vital tente a qualquer preço negar toda e qualquer canalhice. Na visão de Iván, a vida em Cuba (ou na Rússia) pode ser facilmente resumida em poucas frases: era evidente que estávamos mergulhados no fundo de uma atrofiada escala social na qual inteligência, decência, conhecimento e capacidade de trabalho davam lugar à habilidade, à proximidade do dólar, à posição política, a ser filho, sobrinho ou primo de alguém, à arte de resolver, inventar, medrar, fugir, fingir, roubar tudo que fosse passível de roubo. E ao cinismo, à porra do cinismo.

Por não compactuar com esse cenário de degradação, Iván e Liev Davidovitch pagam o preço de estarem jogando uma partida de xadrez sofisticada, repleta de lances obscuros e combinações complicadas. A inevitável derrota se explica na falta de habilidade para calcular todas as variantes, todas as possibilidades. No fim, os adversários, obviamente mais rudes, mais ignorantes, são aqueles que vencem o jogo.

A coda dessa sinfonia macabra está na troca de narrador, no último capítulo. Como se fosse o herdeiro da tragédia, restou a Daniel Fonseca Ledesma, grande amigo de Iván Cárdenas Maturell, contar o desfecho da narrativa. Também lhe cabe lembrar que em das muitas conversas que tiveram, ouviu o amigo lhe dizer que Eu também sou um fantasma... – síntese mais do que eloquente da crueldade com que a política (e, por extensão, a literatura) trata homens como Liev Davidovitch e Iván Cárdenas Maturell. 

sexta-feira, 30 de maio de 2014

A ORIGEM DO MUNDO



O ácido da amargura me perfurava as vísceras, confessa Patricio Illanes, carinhosamente chamado de Pato e/ou Patito, protagonista do romance A Origem do Mundo, escrito em 1996 (publicado no Brasil em 2014) pelo chileno Jorge Edwards Valdés, e que trava um diálogo espe(ta)cular com Dom Casmurro (Machado de Assis, 1900). A frase de Patito não deve ser levada a sério, faz parte de sua personalidade e do show que lhe coube representar no mundo das circunstâncias sociais e dos exageros românticos.

Patrício Illanes tem cerca de 70 anos, médico praticamente aposentado, natural de Iquique, no norte do Chile, e está morando em Paris por motivos políticos.  Casado com Silvia – quase vinte anos mais moça –, leva uma vida tranquila, quase monótona.  Como não fuma e o álcool não lhe cai bem, poucas coisas o divertem. Uma dessas exceções é a companhia de Felipe Diaz. Sem muito pudor, para gozo mútuo, Felipe adora contar, muitas vezes com riqueza de detalhes, as aventuras sentimentais e sexuais que preenchem a sua vida de solteirão – igualmente degredado na capital francesa. Essa brincadeira, que mistura a canalhice adolescente com o bom humor masculino, serve para diminuir as diferenças políticas – que poderiam os separar. Enquanto Patito continua acreditando nos ideais humanitários, Felipe se desencantou com a esquerda. Tornou-se um cínico, desses que multiplicam a alegria ao desancar a utopia socialista. Evidentemente, a comunidade de hispano hablantes o transformou em persona non grata.

A tranquilidade se desmancha quando Felipe – talvez assustado com a forma avassaladora que as bebidas alcoólicas tomaram conta de sua vida, talvez com medo da impotência sexual – mistura tranquilizantes com uma boa dose de uísque. Essa atitude tranquiliza as angústias do morto e abre as portas para a inquietação na vida de Patrício Illanes.
  
Patito, ao ver o descontrole da esposa diante do cadáver, sente uma agulhada inesperada no coração. (...) observou de soslaio os olhos avermelhados, o olhar de ternura rasgada, intensa, de amor! – porque não era de nenhuma outra coisa – que Silvia dirigia à cabeça inerte de Felipe; e sua dúvidas, que até então havia se sustentado, apesar das aparências, e o tinham protegido e lhe ofereciam uma permanente porta de escape, se dissiparam naquele momento. Nesse instante,  os olhos perplexos do médico foram inundados pela centelha do ciúme. Felipe e Silvia tiveram um caso – só assim se justificaria toda aquela dor que ele viu nas lágrimas da esposa. Então, como só é possível nesses momentos, o que parecia paz perpétua se transforma em obsessão incontrolável. Com visível descontrole emocional, Patito invade o apartamento do morto e começa a procurar por provas da infidelidade. Encontra um pacote de fotografias. Fragmentos de um extenso discurso amoroso. Entre vários nus de péssima qualidade, Encontrei, porém, uma mulher mais para gordinha, bem constituída, com o rosto escondido debaixo dos lençóis em desordem e de pernas abertas, um sexo feminino fotografado em primeiro plano, curiosamente parecido com A origem do mundo, o quadro de Gustave Courbet que Silvia e eu acabávamos de visitar e que tinha sido exposto depois de mais de um século no Musée d’Orsay. Uma vertigem de desencanto o fez afundar na escuridão que acompanha a agonia. Em outras palavras, mergulha na camada de equívocos que constitui o confuso tema das traições conjugais. Creio que não era Silvia, pelo menos quis pensar que não era, mas produziu-se uma coincidência terrível, que durante longos minutos não consegui suportar. Minhas pernas fraquejaram e pensei que eu fosse cair de repente no chão, fulminado. Debaixo daquela réplica mal fotografada, mas não mal pensada, de A origem do mundo, réplica provavelmente inconsciente, simples coincidência com aquele suposto modelo, encontrei uma pequena fotografia, tamanho três por quatro, descolada de forma tosca de um documento velho.
– Silvia! – exclamei em voz alta, muitíssimo pálido, trêmulo, com o pulso a mil, a boca seca. 

Qualquer semelhança com alguns trechos de Dom Casmurro não são mera coincidência. Basta lembrar o (hipotético) insight que separa o antes e o depois na vida conjugal de Bento de Albuquerque Santiago e Maria Capitolina Pádua Santiago, protagonistas do texto machadiano: Aproximei-me de Ezequiel, achei que Capitu tinha razão; eram os olhos de Escobar, mas não me pareceram esquisitos por isso. Afinal não haveria mais que meia dúzia de expressões no mundo, e muitas semelhanças se dariam naturalmente. "Naturalmente", observou o mais célebre de todos os cornos da literatura brasileira, homem que só consegue obter alguma satisfação pessoal quando renega o filho e proclama ao mundo que foi traído pela mulher que amou ou melhor, pela mulher que diz ter amado.

Sem poder sujar o terno com o sangue do comborço, de qualquer forma uma impossibilidade, visto que o rival já estava morto, e ele, Patrício Illanes, o marido traído, estava vivendo no século XX, bem afastado do medievalismo narrado em Madame Bovary (Gustave Flaubert, 1857) e O Primo Basílio (Eça de Queiróz, 1878), só lhe restou manter a dignidade e a elegância. Patito nunca foi um homem de ações bruscas ou de destemperos passionais.

Quer dizer, se comparado com Bentinho, Patito Illanes pode ser considerado um fidalgo. Diante da desgraça, trata (apesar do péssimo trocadilho) o pathos – paixão, sofrimento, doença – com bom humor. Em contrapartida, como compete a todos os maridos que foram traidos (literariamente ou não), não consegue escapar do patético. Ciente de que as paixões prevalecem sobre a razão e que a morte nunca significa o término de uma história, pois sempre ficam testemunhas, começa a importunar os amigos, na ânsia de conseguir algum tipo de informação que confirme o que imagina ser uma certeza. Ninguém sabe de nada. Nunca viram o mínimo indicio. E o aconselham a parar de tentar sabotar um casamento que todos invejam. 

Remando contra a correnteza, talvez para autenticar a falsificação amorosa em que transformou a própria vida, Patito prefere continuar a jornada na direção da insensatez. Cada negativa reabastece as dúvidas, multiplica as suspeitas. Até que...

Silvia, assumindo o papel de narradora, dando voz ao outro lado da questão, relata que, como compete às mulheres enamoradas, resgata o marido completamente bêbado no apartamento de antigos desafetos. É hora de colocar as cartas na mesa. Ele, pela primeira vez, desperta do delírio e encara a esposa. Envolto pelo medo, faz a pergunta que pode destruir para sempre o casamento. Ela fica confusa com essa necessidade intempestiva de discutir a relação. Como boa esgrimista, desfere alguns golpes defensivos, lembra que ele também já cometeu deslizes. Por fim, seja para acalmar o marido, seja para evitar novos desentendimentos, confessa ter tido um caso rápido, uns quatro ou cinco encontros, com Felipe. E se propõe a contar as minúcias dessa história.

Acariciei-o por baixo dos lençóis, pensando que contar as coisas era um jogo, uma invenção curiosa, e que contar tudo, toda a verdade, (...), era impossível, e notei, de repente, com surpresa, que ele estava com uma ereção como as de seus anos maduros, distantes, apesar de estar semiadormecido. Me pareceu a prova de que seu transtorno, sua súbita demência, não era nenhuma brincadeira. Ele suspirou, murmurou frases desconexas e depois, já mais desperto, pegou a foto maior, a que se parecia com o quadro.
– Parece muito com você – murmurou, com uma voz que tinha se enrolado no fundo da garganta.
Não respondi nada. Ele ou me mataria ou me estrangularia, porque ainda tem muita força, ou se salvaria e nos salvávamos todos.
– Não quer ficar na mesma posição da mulher da foto?
Não respondi nada também. Ele, então, levantou os lençóis, que mal se podia suportar por causa do calor, e cobriu meu rosto. Depois separou minha perna esquerda. Olhou para mim, acho, porque eu não o via, durante algum tempo, e provavelmente me comparou com a foto.
– É você – sussurrou, subindo em cima de mim, me penetrando, sem deixar que tirasse o lençol do rosto.
– Sim – eu disse. – Sou eu.

Fantasticamente bem escrito, repleto de frases caudalosas, dessas em que o olhar do leitor se perde entre vírgulas e chistes, A Origem do Mundo, além de reescrever um tema machadiano, onde contrastar alguns episódios provavelmente é parte mais divertida da leitura, aposta em tese oposta a aquela foi defendida por Bentinho: não há maior prazer do que o celebrar da vida.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

AMÁLGAMA, DE RUBEM FONSECA



Ficar vários anos sem ler Rubem Fonseca ajuda a afastar a sombra dos contos e romances que ele escreveu no século passado. A distância, entre tantas vantagens, possibilita espaço para construir uma nova perspectiva crítica. Diante de um dos escritores fundamentais da história da literatura brasileira contemporânea, quais são as chances do leitor se decepcionar com o autor dos contos que constituem Lucia McCartney (1967), Feliz Ano Velho (1975) ou O Cobrador (1979), entre tantos outros livros?

A resposta surge sem nenhuma dificuldade: basta ler o último livro, Amálgama, publicado em 2013. O Mestre, assim mesmo, em maiúsculas, aos 88 anos, perdeu a noção de que deve se aposentar – imediatamente. Ninguém o avisou que livros desastrosos colocam em perigo reputações que pareciam estar acima do bem e do mal. Com aspectos de comida requentada, sem gosto, sem tempero, os 34 textos que integram Amálgama encontram no adjetivo ruim uma definição natural. Alguns dos “contos”, se considerarmos que conto é tudo aquilo que chamamos conto, como defendia Mário de Andrade, não passam de esboços mal feitos, desses que parecem ter sido feitos por algum principiante literário. O leitor, comprovando o quanto é triste a decadência, precisa superar o desconforto de ler narrativas mal construídas, patéticas, risíveis.

Em outras palavras, é inadmissível aceitar que textos como Noite, Conto de Amor, Poema da Vida, Na Hora de Morrer, O Espreitador, O Matador de Corretores, Crianças e Velhos, entre outros, levem a assinatura de Rubem Fonseca. Ao abrir o livro e encontrar tanta porcaria, cabe a pergunta: será que ele nunca mais conseguirá alcançar a força de histórias como Feliz Ano Velho, O Cobrador, Passeio Noturno (I e II)?

Ao mesmo tempo, alguns desses arremedos, que levam a griffe Rubem Fonseca, apresentam características distintivas do autor. A obsessão pelas explicações desnecessárias (típicas da arrogância intelectual) e a violência sem sentido se repetem com insuportável constância. O mesmo se pode dizer do gosto duvidoso por lamentos misóginos, mutilações e anomalias físicas. Em todos os personagens falta densidade psicológica. Parecem gravuras recortadas de alguma revista e que foram coladas uma ao lado da outra, compondo um painel sem unidade ou coerência.
   
Alguns dos textos foram agrupados como se fossem poemas. A poesia é outra coisa, muito diferente do empilhar uma frase em cima de outra. Considerar que textos como Sopa de Pedra, Restos, Sentir e Entender, Lembranças e Sem Tesão possuem (mínima) qualidade poética equivale a jogar a literatura brasileira na lata de lixo.

Os poucos “contos” que se salvam (Segredos e Mentiras, Decisão, Best-seller) não valem muito. Ou melhor, parecem exprimir o conceito básico do último texto: foda-se.


TRECHO ESCOLHIDO



Rua do pecado não vendeu nada.”

“Como não vendeu nada.”

“Eu li no jornal que  era um dos mais vendidos.”

“Demos uma grana para sair aquela nota. Mesmo assim não adiantou.”

“Puta merda.”

“O nosso depósito está abarrotado de Ruas do pecado. Você tem que escrever um romance que seja autobiográfico, que conte a história de alguém da sua família com uma doença grave, uma doença que faça a pessoa sofrer muito, algo maligno que não seja mortal. Entendeu? É isso que os leitores querem hoje em dia, uma história que tenha veracidade. Ninguém mais quer ler ficção, a ficção acabou. É isso que vende. Você tem alguém assim na sua família?”

“Sim, tenho.”

“Alguém próximo, uma pessoa muito querida?”

“Sim.”

“Você pode me dizer quem é?”

“Não, não, por enquanto é um segredo.”

“Não tem problema. Então, mãos à obra.”