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segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

NORTE E SUL

O romance Norte e Sul, da britânica Elizabeth Gaskel (pseudônimo literário de Elizabeth Cleghorn Stevenson, 1837-1901), publicado em livro originalmente em 1855, e que, salvo engano, somente agora, um século e meio depois, recebeu uma edição brasileira, tem sido classificado por alguns desavisados como semelhante ao enredo de Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, com a vantagem de enfocar politicamente o período de implantação da industrialização britânica. Essa tese não possui fundamento. E se revela absurda em diversos momentos. De qualquer maneira, insinuar qualquer semelhança entre Gaskel e Austen ou entre Margaret Hale, protagonista de Norte e Sul, e Elizabeth (Lizzy) Bennet, protagonista de Orgulho e Preconceito, mais do que um ridículo golpe publicitário, significa negar as várias qualidades dos romances de Elizabeth Gaskel.

Ler Norte e Sul exige um considerável esforço. São 744 páginas. A estrutura narrativa está sedimentada na vida e nos sentimentos de Margaret Hale. E a isso deve se acrescer que a mistura de romantismo com o realismo incipiente não obtém resultado muito satisfatório (para os padrões atuais), mas, provavelmente, deve ter entusiasmado os leitores da época em que o romance foi publicado. Com uma formação educacional “superior”, obtida no convívio com a sociedade londrina, Margaret precisa se adaptar ao ambiente hostil e quase selvagem de Milton-North (cidade fictícia, provavelmente inspirada por Manchester).

Elizabeth Cleghorn Stevenson
(1837-1901)
Parte do romance se concentra no choque entre o intelectualismo bucólico (sul) e o capitalismo industrial (norte). Nessa discussão são misturados diversos ingredientes, nem todos compatíveis: ética, moral anglicana, idealismo, condições deploráveis de trabalho, forças sindicais, disparidade socioeconômicas, fome, morte. E, claro, o amor – que, depois de ser negado mil vezes, somente se torna palpável no desfecho da narrativa. 

De acordo com o narrador onisciente e onipresente de Norte e Sul, um romance linear (daqueles que possuem início, meio e fim, nesta ordem), (...) a nuvem nunca surge justo naquela parte do horizonte para a qual estamos olhando. Seja no sentido metafórico, ou não, a “nuvem” – dessas que anunciam tempestades, enxurradas e lamaçais – não é tão assustadora quanto parece. Evidentemente, inúmeros obstáculos precisam ser ultrapassados. Somente há algum alívio quando as complicações se esgotam – e isso demora centenas de páginas, muito mais do que o necessário.

Nesse sentido, cabe lembrar que, no romance inglês clássico, muitas questões ficam nas entrelinhas. Em diversos momentos, o subentendido adquire significado superior às palavras que escorrem pelo papel contando uma história (que parece não ter nenhuma importância – exceto alertar que muitos elementos permanecem escondidos).

 Uma dificuldade significativa do livro está na falta de personagens para interagir com os dramas de Margaret – embora todas as situações-chave sejam resolvidas por encaixe. O excesso de discurso interior torna o texto quase indigesto. Sobram reflexões sobre os acontecimentos, uma espécie de falar para si mesmo, como se estivesse colocando em ordem os pensamentos, como se houvesse interlocutores para tantas dúvidas e lamentações. Se ela pudesse conversar com alguma amiga ou com o pai, provavelmente haveria mais ação dramática e menos blábláblá. Margaret Hale, moradora de Milton-North, se transforma em uma mulher solitária, movida pelo altruísmo, interessada nas dificuldades alheias (ali ela havia encontrado um interesse humano),e absolutamente incapaz de resolver adequadamente as próprias dificuldades. 

Quando a mãe de John Thornton diz que Hale vem de uma região aristocrática onde, se as lendas são verdadeiras, os maridos ricos são considerados troféus, mostra um interessante vaticínio sobre o futuro do filho. Embora esteja errada quanto aos interesses econômicos de Margaret, acerta em relação a um possível envolvimento amoroso entre os dois – algo que a desagrada, pois, como compete à classe média em ascensão, almeja algo “melhor” para seu primogênito. Ou seja, quer o filho se case com uma mulher de linhagem nobre e que, submissa, tenha como preocupações fundamentais cuidar dos (possíveis) filhos e jamais causar embaraços sociais para a família. Margaret não coincide com esse perfil.

John também entende que existem obstáculos – além de tudo, ele foi rejeitado quando fez a primeira proposta! Em determinado momento, fica constrangido: Suas faces arderam ao se lembrar da maneira arrogantecom que ela manifestou sua objeção ao comércio, quando se conheceram, porque, se por um lado, com frequência, ele levava ao engano de fazer que bens que eram inferiores pudessem passar por superiores, por outro lado levava a assumir crédito por uma riqueza e por recursos que não tinha posse. Falta-lhe inteligência emocional para entender os sentimentos de uma mulher que, politicamente,está avant la lettre. Margaret se preocupa com o ser humano e despreza todos aqueles que somente estão interessados com a obtenção do lucro.

Norte e Sul, no contexto realista, alerta o leitor para um fato básico: o dinheiro nunca pode ser considerado suficiente para proporcionar a felicidade. Simultaneamente, movido pelo romantismo, inspira a esperança de que o amor supera todos os bloqueios. Construído como uma discussão política ficcional sobre os primórdios da industrialização na Inglaterra, o romance apresenta um bom painel histórico e um personagem – Margaret – que se recusa a aceitar que homens e mulheres sejam explorados pelo capitalismo predatório. 


TRECHO ESCOLHIDO


"Ele, também, deve ter tomado Frederick por meu amante (ela corou quando essa palavra passou por sua mente). Vejo bem agora. Não se trata apenas de saber que menti, mas ele acredita que outra pessoa me quer, e isso... oh, meu Deus, meu Deus, o que vou fazer? O que é isso que estou dizendo? Por que me importo com o que ele pensa de mim, além da perda do bom conceito, por ter contado a verdade ou não? não sei. Mas me sinto infeliz! Como foi triste este último ano em que passei da infância para a velhice. Não tive sequer juventude ou maturidade; não tive nem as esperanças de uma mulher adulta, pois nunca irei casar-me. E antevejo cuidados e tristezas como se eu já fosse velha, com o mesmo espírito amedrontado. Sinto-me cansada desse contínuo apelo para ser forte. Poderia aguentar-me por causa de papai, pois este é um dever natural e piedoso. Penso que poderia aguentar-me contra... Seja como for, teria a energia para resistir às suspeitas injustas e impertinentes da sra. Thornton. Mas é duro sentir o quanto ele está totalmente equivocado a meu respeito. O que aconteceu para que eu me sinta assim tão mórbida hoje? Só sei que não estou conseguindo evitar. Às vezes me entrego. Mas desta vez não irei entregar-me”, disse ela levantando-se de um salto. “Não irei... Não continuarei a pensar em mim nem em minha própria posição. Não ficarei analisando meus sentimentos. Isso não serviria para nada agora. Algum dia, se eu viver o bastante até ficar velha, irei sentar-me ao lado da lareira e, olhando para as brasas, ver a vida que podia ter vivido."

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

STONER

Em alguns casos, a ficção supera o “real” (seja lá o que isso for). Esse pensamento se torna inevitável durante a leitura de Stoner, romance escrito por John Edward Williams, em 1965, e que, salvo engano, somente teve uma edição no Brasil em 2015. Esses 50 anos de defasagem não fizeram mal ao texto. Ao contrário, o livro continua genial – e com sólida base na realidade contemporânea.

A história de William Stoner (1891-1955) fornece visibilidade aos ideais que motivam todos aqueles que escolhem (escolheram, escolherão) seguir a carreira docente universitária. Ao mesmo tempo, o romance procura sinalizar para uma serie de armadilhas que estão espalhadas no interior de cada um dos departamentos que compõem as instituições escolares. As disputas internas são violentas, representação grotesca da guerra bárbara que indivíduos com “instrução superior” deveriam evitar – mas, que, ao contrário, são estimuladas por grupos ambiciosos. Em síntese: somente os ingênuos e os mal-intencionados são capazes de negar que os caminhos profissionais estão contaminados por diversos interesses (vaidade, poder, dinheiro – não necessariamente nessa ordem).

A literatura atingiu Stoner aos 19 anos, quando ele estava cursando ciências agrárias, na Universidade do Missouri. Foi o estranhamento da proposta criativa que o fez mudar o curso de sua vida. A mente inquieta do jovem não conseguiu resistir ao desafio intelectual. Ao contrário da agricultura, onde as regras básicas são praticamente imutáveis, a literatura trabalha com o contraste entre certezas e dúvidas. Mais dúvidas do que certezas. Diante dos livros, tomou consciência de si mesmo de um jeito que nunca lhe ocorrera antes. Superando as dificuldades de uma história pessoal sem significativa formação escolar, concluiu as disciplinas que lhe forneceram um diploma em Literatura Inglesa. O mestrado e o doutorado transcorreram de forma natural – sob a supervisão do professor Archer Sloane, de quem Stoner era discípulo. Convidado a lecionar, aceitou. Foi o seu único emprego na vida. Somente deixou as salas de aula quando ficou doente. De maneira superficial, poderia se dizer que nada de mais significativo aconteceu na vida de William Stoner.

John Edward Williams (1922-1994)
Evidentemente, essa descrição está repleta de omissões. A mais importante se refere à vida privada. Nas minúcias que misturam o ser e o estar no mundo, a vida de um professor que raras vezes foi valorizado de forma adequada se desenvolve em compasso de espera e solidão. Em diversos momentos, ele lembra um de meus professores ficcionais favoritos, Andrew Crocker-Harris (interpretado por Albert Finney), protagonista do filme Nunca te Amei (The Browning Version. Dir. Mike Figgs, 1994), que, ao olhar para trás, faz um balanço do tempo em que esteve em sala de aula. Não é uma visão otimista. Predomina a sensação de que o desenrolar de sua vida transcorreu de modo injusto.

Stoner se apaixonou quatro vezes na vida. A primeira vez foi pela literatura. A segunda, quando conheceu Edith Elaine Bostwick, com quem se casou. A felicidade proposta pelo casamento desapareceu rapidamente. A esposa detestava sexo e, depois de um tempo, deixou de gostar do marido. O terceiro amor de Stoner foi por Grace, sua única filha. Edith tudo fez para dissolver essa ternura. Através de artifícios e ocupações sociais manteve a filha distante (física e afetiva) do pai. Incapaz de reagir à crueldade da esposa, Stoner viu a filha se transformar em um espectro. Na primeira oportunidade, para fugir do clima opressivo criado pela mãe, Grace ficou grávida. Quando o marido se alistou para combater na II Guerra Mundial, tornou-se alcoólatra. O último amor de Stoner surgiu quase por acaso. Katherine Driscoll foi sua aluna em um seminário. A união se resolveu de forma quase que natural – e, para perplexidade do leitor, abençoada por Edith, que assim se livrava da presença do marido.

Stoner cometeu dois erros significativos em sua vida profissional. O primeiro, compreensível, foi reprovar um aluno, Charles Walker, orientado pelo professor Hollis Lomax. O segundo, fruto da ingenuidade profissional, rejeitar a chefia do departamento – quando essa oportunidade surgiu. O que se seguiu não pode ser descrito sem tristeza. Lomax assume o departamento e transforma a vida funcional de Stoner em uma sucursal do inferno. Estoico, ele jamais reclamou do destino. Da melhor maneira possível, sem medir esforços, assumiu as tarefas mais medíocres, as piores turmas, os horários que ninguém queria, e nunca se incomodou com os visíveis impedimentos para que fosse promovido. Até de Katherine precisou desistir, quando Lomax – reclamando a moral e os bons costumes – denunciou a indecência da ligação amorosa. 

Foram anos de sofrimento, suportando a fúria da esposa e a canalhice de Lomax. Stoner somente consegue algum sossego quando é tarde demais. Qualquer coisa perde a importância diante da proximidade da morte.

Stoner, romance escrito de forma linear, em tom monocórdio, com um narrador onisciente e onipresente, vai envolvendo o leitor a cada página. Impossível resistir ao charme de William Stoner, um homem comum, muitas vezes simplório, e que ama a literatura com fé religiosa.


TRECHO ESCOLHIDO


Só uma vez teve noticias de Katherine Driscoll. No começo da primavera de 1949, ele recebeu uma circular da editora de uma grande universidade do leste que anunciava a publicação do livro de Katherine e trazia algumas palavras sobre a autora. Ela estava lecionando numa boa faculdade de letras em Massachusetts e jamais casara. Assim que foi possível, ele arranjou um exemplar do livro. Quando o segurou nas mãos, teve a sensação de que seus dedos se animavam. Eles tremiam tanto que mal conseguiu abri-lo. Folheou as primeiras páginas e leu a dedicatória: “Para W. S.”.


Seus olhos se embaçaram, e por muito tempo ficou sentado sem se mexer. Então balançou a cabeça, voltou ao livro e não o largou até tê-lo lido por inteiro. Era um bom trabalho: a prosa era elegante, e a paixão, disfarçada pela frieza e pela lucidez de sua inteligência. Stoner se deu conta de que era exatamente ela que ele via no que lia, e se maravilhou de quando ainda a sentia próxima. De repente, era como se Katherine estivesse na sala ao lado dele, e ele a tivesse deixado só momentos antes. Sentiu uma espécie de formigamento nos dedos, como se a estivesse tocando. E a consciência daquela perda, que por tanto tempo represara dentro de si, transbordou, engoliu-o, e ele se deixou ser levado para longe, além do controle de sua vontade; ele não queria mais se salvar. Então sorriu ternamente, como que lembrando algo. Ocorreu-lhe que estava com quase 60 anos e que devia ter deixado para trás a força de tamanha paixão, de tamanho amor.


Mas sabia que não era assim, e nunca seria. Sob o entorpecimento, a indiferença, o distanciamento, aquele amor estava ali, intenso e firme. Nunca fora embora. Em sua juventude, ele o dera livremente, sem pensar; dera-o para o conhecimento que lhe fora revelado – quantos anos atrás? – por Archer Slone. Ele o dera a Edith, naqueles primeiros dias insensatos e cegos da corte e casamento. E ele o dera a Katherine, como se nunca o tivesse dado antes. Estranhamente, ele o dera a cada momento de sua vida, e talvez o tivesse dado mais completamente quando não tinha consciência de que o estava dando. Não era uma paixão da mente nem da carne: era mais uma força que abrangia ambas, como se não fossem mais que a matéria e a substância do próprio amor. Para uma mulher ou um poema, seu amor dizia simplesmente: Olhe! Estou vivo.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

PSSICA

A barbárie que impera na região Norte do Brasil está descrita com detalhes assustadores em Pssica, romance do paraense Edyr Augusto. Em uma terra sem lei, ou melhor, em uma terra onde vigora a lei do mais forte, a vida não vale um centavo furado. Trafico de escravas brancas, roubo de cargas, ineficiência policial, crimes sexuais, assassinatos por motivo fútil, drogas – a violência não possui limites. 

Tendo como pano de fundo Belém do Pará e algumas cidades da região de Marajó (Soure, Breves, Portel e Melgaço), o eixo principal de Pssica consiste no desencontro afetivo entre um marginal de terceira classe, Jonas de Lima, vulgo Preá, e a adolescente Janalice. Em paralelo, correm as histórias de Amadeu, policial aposentado, Manuel Tourinho, o angolano, e dezenas de personagens secundários – que entram e saem da narrativa com uma velocidade estarrecedora.

Edyr Augusto
Tudo começou quando Fenque colocou na Internet um vídeo de sexo com a namorada, Janalice, 14 anos. O pai da menina, enfurecido, expulsa a filha de casa, que passa a viver com uma tia. O que se segue é o inominável. Além de ser violentada pelo marido da tia, ela se envolve com personagens do submundo de Belém. Um dia foi raptada por uma quadrilha especializada em prostituição – o resto de sua vida se resume em degradação, física e mental.

Com a morte de Vailson de Lima, o Tabaco, Preá herda a quadrilha do pai. Mas, falta-lhe experiência e sensatez para sobreviver em um mundo apocalíptico. De qualquer forma, em uma festa na casa de Cosme de Barros, vulgo Barrão, prefeito de Breves, conhece, no sentido bíblico, Jane, ou melhor, Janalice. Foi amor à primeira vista. Tentou comprar a menina. Esforço inútil. As complicações seguintes são consequência direta dessa paixão.

Transporte comum na região de Marajó
Depois que Janalice desapareceu, o pai da menina contrata Amadeu para tentar localizá-la. Ao mesmo tempo em que ele descobre que ela está sendo mantido em cativeiro pela rede de prostituição, torna-se um alvo fácil. O mesmo vale para o angolano Manuel Tourinho, que deseja vingar a morte de sua esposa. Ninguém mexe em vespeiro impunemente.

Pssica é uma espécie de maldição, uma praga.  E serve para confirmar que a traição é uma constante em uma terra onde os banhos de sangue são a norma. Nenhum dos personagens da narrativa entende os preceitos éticos elementares da civilização. A corrupção, a cobiça e a selvageria são os motores que os conduzem na direção do horror. O único princípio que quase todos respeitam é a necessidade de sobreviver. Mas, mesmo assim, em um mundo dominado por monstros, há exceções. Ou seja, as normas de convivência social são regidas por regras especiais. Quem não está a serviço do crime, precisa ser eliminado. Simples assim.

A região de Marajó é extremamente pobre
Pssica tem apenas 92 páginas. Essa brevidade (que em outro autor provavelmente se desenvolveria em, no mínimo, 300 páginas) está diretamente relacionada com o negar da elaboração de um enredo mais consistente. Edyr Augusto prefere que suas histórias sejam construídas com velocidade narrativa e falta de cuidado com a carpintaria literária. Usando e abusando das elipses e dos palavrões, quer – de alguma maneira – se aproximar da linguagem coloquial. Em síntese, os detalhes são eliminados (na medida do possível) e a espinha dorsal da narrativa se projeta como elemento principal. Um exemplo dessa estratégia está no fato que cada um dos 17 capítulos não abrange mais do que cinco páginas.


TRECHO ESCOLHIDO

Alberto Alcântara estava ao telefone com o secretário de Segurança. Puta que pariu, Oswaldo! Que merda vocês foram fazer! O Gov tá puto da vida e eu é que escuto. Quem mandou esses teus porras a Breves prender o Barrão? Tá uma cagada na cidade! Prendeu até vereador, sem mandado, porra nenhuma. A cidade está revoltada. E eu é que escuto! Esse pessoal pensa o quê? Tem que ter lei, porra. Manda soltar, porra. Manda soltar e eu nem quero saber como. Dá teu jeito! Tá bom. Deixa comigo. Me dá noticias boas disso, tá? Tá. Oswaldo Dias tentou ligar para Ed Paulo. Nada. Estavam no meio da baía. Ligou para Alberto. Nada ainda. Não faz conexão. Fora de área. Estão no meio da baía e, olha, vê se liga pro superintendente aí porque tem federal no meio e eles são metidos à merda. Deixa comigo. Eu vou é por Brasília.

Orlando bem que tentou, mas não conseguiu chegar perto da área de desembarque dos presos. Todos embarcaram em algumas vans e foram alguns para a Seccional de São Brás, outros para a Superintendência da Polícia Federal, onde rapidamente foram soltos, embarcando em carros luxuosos sem dar entrevistas. Camões e Ed Paulo foram suspensos de suas funções e proibidos de falar ao público. Enquanto isso, o corpo de Sapo era removido da cela onde se encontrava. Foi estrangulado com um arame. Jesuíno, o Podrera, que estava preso com ele, confessou ser o autor. Um desentendimento.

Orlando não sabia o que dizer. Teria sido uma “barriga” a denuncia? Ah, mas que havia algo estranho nisso, havia. Tentou ligar para Amadeu. Fora de área. Ou tocava e não atendia. Dois dias depois, os jornais mostravam fotos do retorno triunfal de Barrão a Breves, carregado pela multidão. Havia sido enredado em uma trama da qual nada tinha a ver e voltava com o aval do governador, seu grande aliado.


quinta-feira, 26 de novembro de 2015

UMA OU DUAS COISAS QUE SEI SOBRE BARTLEBY, O ESCRIVÃO


Tenho umas cinco edições diferentes de Bartleby, o escrivão (Bartleby, the scrivener), narrativa canônica de Herman Melville, publicada inicialmente no volume The Piazzas Tales, de 1856. Para surpresa geral, acabo de comprar mais duas edições do livro. Será que enlouqueci? Na falta de prova psiquiátrica, reúno os volumes que consegui localizar nas estantes e os coloco diante de mim. Estou confuso. Será que preciso de todos eles? Será que não deveria doar uma parte para a Biblioteca Pública? As perguntas se mostraram ineficientes quando parei para pensar nas vicissitudes da vida. E, por mais paradoxal que isso possa parecer, percebo que talvez tenha adquirido outros exemplares do texto. Onde estão? Não sei. Mesmo que os céticos recusem o que parece ser inequívoco, cabe lembrar ao mundo que os livros possuem pernas. E caminham – para longe daqueles que os estão procurando. Só aparecem quando lhes é conveniente. Indiferente à luz que ilumina cada um dos dias da existência humana na Terra, quando o assunto é livros desaparecidos, não adianta reclamar. São os livros que possuem os bibliófilos. E, como cabe aos feitores de escravos, sempre exigem especial atenção. São eles (os livros) que obrigam (abrigam?) um regime de trabalho. Há que cuidar de cada um deles. Urge limpá-los (poeira, insetos, marcas causadas por objetos que alguém esqueceu em lugar inadequado). É necessário evitar as intempéries climáticas. Livros são inimigos mortais do calor e dos líquidos. Além disso, exigem espaço. Isso significa – entre outras coisas – que os móveis devem ser afastados para que as estantes ocupem todas as paredes da casa. Como se essa confusão não fosse o bastasse, ainda há o incômodo diante daquelas pessoas que olham estranho para quem se deixa levar pela paixão pelos livros. Olha lá, o maluco dos livros! – diz a garota que não se cansa de olhar para as atualizações nas redes sociais. Pois é, muitas vezes o bibliófilo se transforma em personagem tragicômico. Ou em uma espécie de ilha social (cercado de livros por todos os lados). Exemplos literários desse delírio não faltam: Peter Kien (Auto-de-Fé, Elias Canetti), Carlos Brauer (A Casa de Papel, Carlos María Domínguez), Lucas Corso (O Clube Dumas, Arturo Pérez-Reverte), Antoine Roquentin e, o seu oposto, o Autodidata (A Náusea, Jean-Paul Sartre), Cliff Janeway (em diversos romances policiais de John Dunning).

La vida es sueño, dizia Pedro Calderón de la Barca. Volto o olhar para as edições do Bartleby que habitam minha biblioteca. Cada um dos livros possui qualidades particulares. Ou seja, elementos que se destacam – significativamente – no contexto literário. Como esquecer a apresentação do Jorge Luis Borges que acompanha a edição da José Olympio? Borges considera Moby Dick como a obra-prima de Herman Melville (Foi o romance infinito que determinou sua glória) e quase se esquece de Bartleby. No entanto, a maior qualidade do comentário está na comparação (ou não comparação) entre Bartleby e algumas narrativas de Kafka. Abriu-se, a partir desse instante, uma avenida na direção da literatura comparada e da exegese do Bartleby. Quem quiser entender melhor essa vertente crítica, precisa ler o posfácio escrito por Modesto Carone, publicado na edição da Cosac Naify.

A edição da José Olympio provavelmente é o volume mais indicado para quem tem contato, pela primeira vez, com o livro. Foi com esse volume debaixo do braço, uns dois anos atrás, que participei de um pequeno seminário em sala de aula. O resultado final ficou bem aquém do desejado. A proposta de Bartleby – contrária à lógica que envolve as relações de trabalho – não conseguiu seduzir meus alunos. Claro que chegamos a um acordo sobre os conceitos básicos do livro, mas faltou o salto de qualidade. No mundo moderno (ambição, eficiência, carreira profissional), o deus dinheiro costuma acenar alegremente – muitas vezes sem perceber que o único sorriso verdadeiro é o de Bartleby!


O volume publicado pela Cosac Naify, na falta de melhor definição, é lindo. Edição para colecionadores – lembrando um tempo anterior a era da reprodutibilidade técnica, em que a produção do saber não separava o artesanato e o intelecto em compartimentos distintos. De qualquer maneira, cabe esclarecer que não pretendia adquiri-lo. Nessas andanças por livrarias e sebos que caracterizam o caminhar dos bibliófilos, o encontrei algumas vezes. Havia a esperança de que alguém, em um gesto de nobreza e amizade,poderia presentear-me com um exemplar... Infelizmente, isso não aconteceu. Só comprei o livro porque ocorreu um desacerto. História longa, que não quero descrever aqui. Desacerto que deu certo. O fato concreto é que o volume agora está a fazer companhia aos outros. E isso é o que importa. Ah, que me perdoem os artistas plásticos, mas, quando tive essa edição em mãos, quase mandei emoldurá-la.

Também comprei uma das edições da Autêntica – aquela que é uma espécie de apêndice para um ensaio do Giorgio Agamben (de quem, convém esclarecer, ninguém pode me acusar de ser admirador). Invertendo o que considero a ordem natural das coisas, esse livro fornece destaque ao texto do filósofo italiano. De imediato, uma pergunta se destaca: por que o editor não escolheu imprimir em separado cada um dos textos? Depois de breve pesquisa na Internet, descobri que, de certa forma, imprimiu. Há uma edição restrita ao texto de Herman Melville. O problema é que eu comprei a versão problemática. Tudo bem, o problema sou eu. Além disso, o texto do Agamben agrega valor à narrativa de Melville. Agregar valor? Epa, isso não está correto! Ninguém deveria ter autorização para falar de Bartleby utilizando uma expressão contrária ao entendimento existencial do personagem. Creio que o filósofo italiano também concordaria com essa restrição. O imobilismo de Bartleby (expresso no mantra Acho melhor não ou Prefiro não fazer ou Preferiria não – dependendo da tradução escolhida para I would prefer not to) se opõe a qualquer análise acumulativa. A ética da submissão aos valores produzidos pelo trabalho entra em rota de colisão com um indivíduo que transforma a si mesmo em obstáculo político para a sociedade utilitarista. Essa metamorfose atordoa a simplicidade daqueles que adicionam a sobrevivência física com a negação intelectual.


Em Bartleby, o escrivão quase nada acontece. Contratado por um escritório de advocacia para copiar diversos documentos legais, em determinado momento Bartleby, sem qualquer razão aparente, decide não mais realizar o trabalho. Depois de demitido, se recusa a deixar o escritório – onde passa a morar. Denunciado à polícia, acaba sendo preso e morre de inanição, após rejeitar qualquer tipo de alimentação. 

A narrativa é conduzida pela voz perplexa do advogado, que em nenhum momento consegue compreender a conduta de seu ex-empregado.     

Muitos leitores modernos se iludem imaginando que Bartleby quer os benefícios do direito à preguiça ou do ócio criativo ou de quaisquer outros privilégios conexos à discussão que contrapõe o dever e o niilismo. Essa possibilidade analítica confirma que há várias interpretações possíveis para o livro. No entanto, a insubordinação de Bartleby possui outra origem. Agamben utiliza o conceito filosófico da contingência (um ser que pode ser e, ao mesmo tempo, não ser) para comentar o curto-circuito comportamental. É uma explicação muito complicada para o leitor comum. Não convence. Do mesmo modo, análises de caráter econômico (liberais ou marxistas) parecem deixar de lado o elemento mais importante: a criação literária. O mesmo vale para a psicanálise, que é muito esquemática.
 
Herman Melville (1819-1891)

Sobra, então, o quê? Ora, a fruição de encontrar um personagem literário que realiza a sua função narrativa dizendo não. A implosão do lugar-comum que contamina o imaginário do leitor, o final feliz, confirma que a inconformidade é um elemento significativo para a expressão literária. Nesse sentido, Bartleby ultrapassa a dimensão de figura de papel e, na medida do possível, se transforma em humano. É o que basta para torná-lo imortal.

P. S: Há uma versão cinematográfica estadunidense (Dir. Jonathan Parker, 2001) e que eu não vi. Segundo a Wikipédia, The film diverges from Melville's story, setting it in a modern office and adding sitcom-style humor, with an element of surrealism.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

QUE HORAS ELA VOLTA?

A maior e melhor surpresa do cinema nacional dos últimos tempos é Que Horas Ela Volta? (Dir. Anna Muylaert, 2015). Vários motivos contribuem para essa façanha. O principal é colocar em destaque um conceito que os brasileiros adoram ignorar: a luta de classes. Mas, calma lá, não há motivo para sustos: a teoria marxista foi diluída nas centenas de litros d’água da piscina da mansão em que Val (interpretada por Regina Casé) trabalha. No inicio do filme, seguindo as diretrizes propostas pelo binômio Casa Grande & Senzala, cada um dos personagens conhece o seu lugar no mundo. Val é a empregada domesticada, ingênua e alienada. José Carlos (Lourenço Mutarelli) e Bárbara (Karine Teles) são os patrões compreensivos e amistosos. Fábio (Michel Joelsas), filho biológico dos donos da casa, filho de fato da empregada, desfruta da permeabilidade que existe entre os dois ambientes.

O mundo perfeito, construído artificialmente, desmorona diante de um elemento desagregador. Antes de ir trabalhar em São Paulo, Val deixou a filha, Jéssica (Camila Márdila), em Pernambuco. Dez anos se passaram – ou melhor, separaram mãe e filha. Nesse período, as duas mulheres construíram histórias diferentes, sem muitos pontos de convergência. O principal choque entre elas decorre dessa forma de entender  de forma antagônica  o mundo. 

Inesperadamente, a filha viaja para São Paulo, para fazer as provas do vestibular. Quer morar com a mãe, enquanto cursa arquitetura. Mas, há um pequeno inconveniente: a mãe mora no serviço, em um quartinho nos fundos da mansão.  Ao ver a situação de submissão de Val, que não reclama por viver em regime de semiescravidão, Jéssica demonstra – de forma inequívoca – o seu descontentamento. Não entende como – em uma casa tão grande, em que o quarto para hóspede está sempre vazio – sua mãe se sujeite com condições indignas de vida. Ato contínuo, “toma de assalto” o quarto vazio. 

O jogo teatral – que separa o proscênio dos bastidores – perde o poder de produzir a fantasia da ordem com a chegada de Jéssica. O que se segue não é difícil de imaginar: a menina exerce “algumas liberdades” com os patrões de Val – que quase surta, porque imagina a possibilidade de perder o emprego. Ao se referir à filha, repete – como se fosse um mantra – que ela não tem noção de nada. Em momento oportuno, esclarece o básico: Quando eles falam, quando eles oferecem alguma coisa que é deles, é por educação, é porque eles têm certeza que a gente vai dizer não. Impossível ser mais clara.

A patroa também não fica feliz. Bárbara não consegue suportar a filha da empregada que não sabe se comportar como a filha da empregada. Além disso, há outro elemento desagregador e que não passa despercebido da patroa: José Carlos tenta – da forma mais desajeitada possível – seduzir Jéssica.

A soma desses ingredientes contribui para aumentar o potencial dramático do enredo – sugerindo uma tragédia que não ocorre. A solução para os impasses ocorre de maneira pacífica – e bem bacana. Quando Val entra pela primeira vez dentro da piscina – um dos locais proibidos para os empregados – ocorre uma espécie de batismo (no sentido católico), a linha divisória entre o paganismo e a iluminação espiritual. Depois desse momento, nada mais será como antes. A mãe e a filha acertam as diferenças (ou melhor, aceitam as diferenças) e decidem morar com Jorge, o filho de Jéssica, que ficou em Pernambuco, numa repetição patética da história familiar.

Um tema paralelo, e que merece bastante atenção, é o jogo espe(ta)cular da filiação. Em alguns momentos, ao contrastar Fábio e Jéssica, o espectador do filme se pergunta: quem é filho de quem? Entre Fábio e Jéssica, o coração de Val se divide. Enquanto recrimina o comportamento agressivo da filha, trata Fábio com benevolência (por exemplo, acoberta o uso intensivo de maconha). Em contrapartida, José Carlos e Bárbara tratam o filho com distância, como se ele fosse um peso que a vida social exige que seja carregado. Depois que os dois jovens terminam as provas do vestibular, há um relampejar de esclarecimento. Jéssica passa, com boas notas. Fábio não é aprovado (faltou dois pontos) – e ganha, como prêmio, uma viagem para a Austrália. Como compete às abstrações teóricas, a justiça desaparece diante do poder econômico. 

Uma metáfora significativa se apresenta no jogo de café (xícaras, pires e garrafa térmica) que Val compra para presentear Bárbara, no dia de seu aniversário. A patroa agradece e manda guardar para uma ocasião especial. Ou seja, para nunca ser usado. Ao final do filme, quando Val pede demissão, ela leva para a nova casa, o utensilio doméstico. Mais do que um símbolo da condição econômica, o uso do jogo de café sinaliza para a reconstrução familiar, para uma vida menos açodada pela tirania social.

Em alguns momentos, Que Horas Ela Volta? lembra dois outros filmes. Pela discussão dos papéis sociais, Domésticas (Dir. Fernando Meireles, 2001); pelo tema do "anjo vingador", que subverte a estrutura familiar, Teorema (Dir. Pier-Paolo Pasolini, 1968). Melhores influências não poderia haver – se é que Anna Muylaert foi influenciada por esses dois clássicos.

Para quem ainda não viu Que Horas Ela Volta?, recomendo que alugue uma cópia na locadora mais próxima. O filme vale o valor da locação. Ou melhor, renova a esperança de que o Brasil ainda é capaz de produzir cinema de qualidade.