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sexta-feira, 19 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXXXIX)




Amanhã, exatamente às 18h44, começa o inverno. Não sei se estou preparado para esse encontro climatológico. Inclusive porque o Brasil está envolto em brumas confusas. Um funcionário do governo trocou o Equador de lugar e isso talvez tenha afetado o Trópico de Capricórnio.

Conta a lenda grega que Hades (deus do mundo interior e dos mortos) raptou Perséfone, filha de Deméter (deusa da fertilidade e da agricultura) e de Zeus (senhor do Olimpo). Desolada, Deméter começou a chorar – o que causou alagamentos, enchentes e tempestades. O mundo se tornou sombrio. Os homens, ao ver que as plantações estavam sendo destruídas e que a fome estava se aproximando, exigiram que Zeus resolvesse o conflito. Deméter queria a volta da filha. Depois de muitas complicações, eles chegaram a um acordo. Perséfone voltou, mas só por seis meses. No resto do ano, fica com Hades. Quando Deméter está com a filha, o período de alegria é chamado de primavera e verão. Quando Perséfone está com Hades, o período de tristeza é chamado de outono e inverno.  

O frio exige que o indivíduo utilize uma espécie de armadura: camisas de flanela, casacos, cachecóis, luvas, meias grossas e botas. O uso de bonés, gorros e chapéus é opcional (mas as baixas temperaturas não podem servir de desculpa para a falta de elegância). Essas roupas de combate, por sua vez, possuem dupla finalidade. A primeira, não deixar que os corpos congelem. A segunda, encenar um ritual de sedução. O ato de despir – lentamente – peça por peça vai revelando contornos e surpresas. O desejo, ampliado pelo que estava oculto, fica mais intenso.         

Não existe calefação no Planalto Catarinense. Nas cidades, a urbanização desenfreada e os condomínios verticais contribuíram para que os fogões de lenha e as lareiras se transformassem em lembranças de um tempo que foi tragado pelo nevoeiro. Também desapareceram os pelegos e as cobertas de pena. Esses símbolos de um modo de vida foram substituídos por artigos industrializados em terras distantes, fábricas e lugares que desconhecem aqueles que comprarão os produtos postos à venda.

Nas manhãs em que as temperaturas costumam alcançar vários graus negativos, a geada e a neve modificam a paisagem. Lâminas de gelo substituem o verde dos campos. A respiração das pessoas e dos animais quase se solidifica. O inóspito se instala.



Café, chimarrão, chocolate quente, chá, quentão, ponche, vinho – dependendo do gosto e do freguês, há bebidas para todos. No entanto, ninguém pode negar que um martelinho daquela que matou o guarda têm o seu valor. Desce queimando. O resto não pode ser descrito com palavras, porque ainda não inventaram uma forma de nomear esse calorão.

A quarentena adiou as festas de são João. Possivelmente, alguém encomendará pelo telefone uma meia dúzia de paçoquinhas, uns pés-de-moleque, algumas espigas de milho verde e junto com pipoca de micro-onda fingirão que esse tipo de encenação é sinônimo de felicidade. Talvez seja servido canjica e arroz-doce. Transmissões via whatsup para algum parente próximo podem acontecer.

Winter is coming. O lema da casa Stark deixará de ser uma promessa. Durante mais três meses a ausência de Perséfone entristecerá Deméter. Aos mortais nada mais restará senão aquecer o corpo com sopas diversas e pinhão assado na chapa. E esperar, esperar, esperar.


Um comentário:

  1. Gosto do frio! Acho as pessoas mais elegantes!Desconhecia o mito do inverno grego.
    Abraço!

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