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domingo, 21 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XCI)




Pastel de carne, queijo e ovo. Mais ovo do que queijo. Comprei na pastelaria da esquina, uns cinquenta metros de onde moro. Final da tarde. Não é possível dizer que é uma iguaria. Aliás, passa longe disso. Nenhum problema. O desejo não está ligado umbilicalmente com a qualidade.

Estava ouvindo uma seleção de músicas do Belchior. Uma das vantagens do YouTube. Distraído, sai sem máscara. No meio do caminho, percebi a maluquice e voltei. Voltei, mascarado, à pastelaria. Li metade de um conto do livro novo do Marcelo Moutinho. Uma história maluca sobre um roubo. Não consegui chegar ao desfecho, o garçom me avisou que a cozinha tinha finalizado a encomenda. Mais tarde retomo a leitura.        
  
Comi o pastel com garfo e faca – o que muita gente considera uma heresia. Para ampliar as reclamações, Coca-Cola no acompanhamento. Posso visualizar a imagem de algumas pessoas torcendo o nariz e lamentando a minha má alimentação. E, com a melhor das boas intenções, é possível que alguém tente me puxar para o lado negro da força, o vegetarianismo. Como quero evitar o uso do sabre de luz, não vou postar foto da fritura nas redes sociais. Muito barulho por nada (much ado about nothing).



Sonho de Valsa de sobremesa. Apenas um. Que preciso domar as vontades insensatas. As outras também precisam de freio. Sou desorganizado por natureza. Conjugo a bagunça como se fosse verbo principal. Muitas vezes, em momentos de meu passado obscuro, deixei a prudência de lado e fiz o que me deu na telha, como dizia minha avó. Evidentemente, isso resultou em arrependimentos variados. Não vamos contabilizar a desgraça, talvez outra hora, provavelmente daqui a uns vinte anos, I’m worse at what I do best / and for this gift I feel blessed (sou o pior no que faço de melhor / e por essa dádiva me sinto abençoado) diz a letra daquela música do Nirvana – que gosto de escutar na voz da Patti Smith.

Na cozinha, comi uns três ou quatro grãos de uva, um exercício desnecessário de gula. Fui buscar os panos de prato sujos, amanhã é dia de levar as roupas para a lavanderia. No banheiro, troquei as toalhas. No quarto, juntei camisas e calças em uma sacola. Não ficou pesada.  

Depois de quase quatro meses de confinamento, estou prestes a receber diploma de dono de casa. Suma cum laude. Tenho lavado pratos quase diariamente, não estou deixando o banheiro sujo (quer dizer...) e passo com frequência um pano molhado no chão da cozinha (aquelas manchas, ah, aquelas manchas estão me deixando irritado). Nos dias de sol, na sacada reabasteço o estoque de vitamina D. O resto do dia passo no escritório, escrevendo, lendo ou fuçando na internet. Assisto o mínimo possível de televisão.  

Daqui a pouco, vou deitar no sofá, me enrolar em cobertor, ler um pouco e ouvir música. Talvez alguns clássicos da MPB. Estou me sentindo saudosista de um Brasil que não existe mais.  Mais tarde, quando for hora de dormir, me despedirei suavemente desse que é o primeiro domingo do inverno.

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