Páginas

terça-feira, 16 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXXXVI)




16 de junho. Três acontecimentos literários se unem nesta data. O primeiro celebra um evento especial, o Bloomsday, o dia de Bloom, espaço temporal que abriga o romance Ulisses, de James Augustine Aloysius Joyce (1882-1941). O segundo, o nascimento de Giovanni Boccaccio (1313-1375). O último, o aniversário de mestre João Francisco Régis Rath de Oliveira (1924-2016).



James Joyce escreveu um daqueles romances que quase ninguém leu, mas que costuma ser citado como se fosse a vigésima maravilha – ou algo assim. Além disso, como se trata de um texto enorme, serve para ocupar um bom espaço na estante. Para muitos leitores de ocasião, um excelente objeto de decoração. Acrescenta um charme todo especial como pano de fundo em “lives” e fotos promocionais. Salvo engano, há três traduções no mercado editorial, sendo a última, do Caetano Galindo, a mais palatável para quem não conhece as delícias gastronômicas da haulte culture (por favor, não confundir com haute couture, embora alguns pespontos sejam comuns).



Decameron, escrito entre 1348 e 1353, o livro mais conhecido de Boccaccio, é um conjunto de 100 contos. Os narradores são sete mulheres e três homens que estão isolados em uma vila de Florença, tentando escapar da peste negra. Para evitar o tédio, eles contam histórias (verdadeiras e ficcionais). Deslizando entre o trágico e o erótico, entre as lições de vida e os horrores do cotidiano, Boccaccio produziu um interessante retrato de época – muito próximo do que, atualmente, a crítica literária chama de realismo. Uma das versões cinematográficas foi dirigida, em 1971, por Pier Paolo Pasolini (1922-1975).



O que distinguiu João Rath foi a sua profissão: livreiro. Além disso, foi um amigo generoso, conselheiro nas boas e más horas, intelectual brilhante. Apesar de parecer austero, sentado atrás daquela escrivaninha atulhada de papéis, possuía um humor excelente, rico em citações e trocadilhos. Como se isso não bastasse, tinha uma memória invejável. Lembro-me dele tomando chimarrão, fazendo palavras cruzadas, lendo o jornal ou contando causos de um tempo que não existe mais. Tinha paciência e lucidez para interpretar os acontecimentos contemporâneos, sempre se baseando na experiência de quem viu, tantas vezes, o destempero humano se impor aos interesses coletivos.

São os livros que unem esses três homens. Eles viveram em épocas turbulentas e testemunharam o arbítrio e a barbárie. O anti-intelectualismo que caracteriza a Idade Média (Boccaccio), a I e a II Guerra Mundial (Joyce), o getulismo e a ditadura militar no Brasil (João Rath) não foram muito diferentes. Cada um dos três homens precisou, ao seu modo, criar mecanismos de resistência e sobrevivência. E isso se efetivou no uso de outra matriz, diferente da força bruta, que é a cultura. Enquanto indivíduos como eles existirem, a humanidade resistirá.   

Nenhum comentário:

Postar um comentário