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terça-feira, 23 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XCIII)

      


Estou planejando mudanças na biblioteca. Gostaria de me organizar melhor. Ou menos pior. O que vier primeiro. Mas,... (o que destrói qualquer iniciativa é a existência do “mas”). Não sei se tenho forças para trocar uns 600 ou 700 livros de lugar. Força, no sentido triplo de determinação, disposição e ação física. Além disso, procrastinar é um dos meus verbos favoritos.

Um livro tem peso médio entre 350 e 500 gramas. Deslocar cerca de 250 quilos entre um lugar e outro – mesmo que a distância entre os dois pontos seja menor que três metros – nunca é tarefa fácil.  

O principal motivo para essa movimentação é bastante simples – ao mesmo tempo, muito especial. No final do ano passado, fui surpreendido por um ato de generosidade. Ganhei cerca de 500 livros. Literatura especializada: teoria literária, análise do discurso, filosofia da linguagem e áreas afins. Livros valiosíssimos (em vários sentidos) e que estavam fora de meu alcance. Tudo o que precisava fazer era ir buscar.

Conto o milagre, mas não conto o santo (como dizia minha avó). Primeiro, porque não tenho permissão para isso, e, segundo, porque defendo a tese de que a bondade não precisa de publicidade. Em algum momento da vida, espero poder repetir o gesto – não como compensação pelo que recebi, mas porque o afeto é que nos distingue como seres humanos.



A epopeia (não consigo descrever os acontecimentos de outra maneira) de trazer os livros para cá está composta por vários episódios e algumas trapalhadas. Vou resumir. Não tenho carro (sequer sei dirigir) e, depois de várias tentativas, não consegui encontrar uma transportadora que fizesse o serviço com alguma rapidez e por um preço razoável. Cogitei em ir de ônibus e trazê-los no bagageiro. Talvez precisasse fazer duas ou três viagens. Percebi que isso era insensato e inviável economicamente. Quando estava quase desistindo, consegui companhia para a aventura. Um dia inteiro na estrada, sacos e caixas empilhados dentro do automóvel. Fomos e voltamos conversando sobre música, os amigos que temos em comum e bobagens em geral. Com exceção da dor nas costas – e que resultou na necessidade de uma dose cavalar de relaxante muscular –, foi divertido.

Agora, que passou algum tempo, depois que fiz um reconhecimento geral das novas aquisições, separei isso e aquilo, e confirmando que o suave tédio da ordem ainda não os envolve (como escreveu Walter Benjamim), aventei a hipótese de integrar os novos com o acervo geral. Isso só será possível se mexer nas estantes e redefinir lugares. É trabalho para vários dias.  

Será uma forma produtiva de aproveitar a quarentena, diz o Grilo Falante que habita o meu mundo imaginário. Então, tá! Vou agendar o evento. De preferência para daqui a uns cinco anos ou mais, pode ser?, disse o meu inconsciente – esse notório sabotador! A consciência crítica (monstro que não consegue existir sem a organização e a ordem) rebateu com um claro que não, isso é serviço para o aqui e o agora!

Ai, que preguiça, exclama o herói sem caráter em que me transformei.


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