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quarta-feira, 10 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXXX)




Algo raro aconteceu na noite passada. Acordei durante a madrugada. Perdi o sono. Ou me perdi do sono. Tanto faz. Com preguiça de levantar e acionar o interruptor, preferi usar o controle remoto e ligar a televisão. Estava passando, na Globo, Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (Dir. Daniel Ribeiro, 2014), filme nacional relativamente conhecido.

Nestes tempos turbulentos em que estamos vivendo, onde o moralismo tenta castrar qualquer atividade um pouco mais, digamos, progressista, cabe um comentário sobre esse interessante fenômeno. Exibir um filme que trata de três temas de exclusão (deficiência física, bullying e a descoberta da homossexualidade) em horário que se caracteriza por enlatados de terceira classe, assinala que há qualquer coisa no ar, além dos aviões de carreira, como perguntaria o Barão de Itararé? Ou foi apenas para cumprir a cota de filmes nacionais? Ou, ainda, trata-se de uma manifestação do acaso?

Somente o responsável pela programação de filmes da emissora pode responder a essas perguntas. Obviamente, isso não impede as teses conspiratórias e outras paranoias. Quem olha a lista de filmes exibidos na última semana, no mesmo horário, percebe que o filme exibido na terça-feira é um estranho no ninho.  

Essa percepção me lembrou que, nos anos 90, fui colega de repartição do Mestre Estevan Borges (1928-1999), fantástico jornalista e um apaixonado por cinema. Todos os dias ele consultava a programação das emissoras de televisão, publicada nos jornais. Muitas vezes o vi reclamar sobre o horário dos filmes. Dizia que o mundo estava mergulhando na ignorância, pois os filmes mais interessantes estavam sendo exibidos no meio da madrugada, em horário proibitivo para qualquer pessoa que precisasse estar no trabalho às oito horas da manhã. Era o caso dele (o meu horário era mais flexível).

Sugeri mandarmos carta para o Paulo Perdigão (1939-2006), que era o programador de filmes da Rede Globo naquela época. Por algum motivo que não consigo lembrar, nunca enviamos a reclamação. Isso não evitou que continuássemos a protestar contra a impossibilidade de ver, mais uma vez, entre outros, O Tesouro de Sierra Maestra (Dir. John Ford, 1948), A Malvada (Dir. Joseph Mankiewicz, 1950) ou A Montanha dos Sete Abutres (Dir. Billy Wilder, 1951).   

De lá para cá, mudou muito a programação das televisões e o cinema. E, que me perdoem os fãs dos efeitos especiais, foi para pior. O chroma key criou uma nova forma de miragem e dispensou o poder sedutor da interpretação. Dispensou a atuação dramática. Basta fazer um pouco mímica e a mesa de edição resolve todo o resto. Simultaneamente, a televisão adotou um projeto de distanciamento cultural, onde a violência (simbólica, imaginária e real) ganhou espaço. 



Retomando Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, que é derivado do curta-metragem Hoje Eu Não Quero Voltar Sozinho (Dir. Daniel Ribeiro, 2010), pode-se dizer que a sua qualidade mais destacada está em não pretender iniciar uma discussão sobre os temas que aborda. Sequer propõe uma posição estética no cenário cinematográfico brasileiro (campo/contracampo, esquematismo no desenvolvimento dos diálogos, pouca invenção). No máximo, além do excelente trabalho de ator dos dois rapazes (Ghilherme Lobo e Fabio Audi), o filme projeta um cenário intimista de alguns problemas que são (de certa forma) universais. Todos os momentos importantes do filme se afastam da ruptura. A briga com os pais resulta em reconciliação. Os desacertos com a amiga são ultrapassados. O namoro dos meninos não está acompanhado de crises de identidade. Esse acomodamento das crises resulta em um filme simpático e que aponta para possibilidades de felicidade. Em outras palavras, se não fosse pelo moralismo judaico-cristão-ocidental, poderia passar na sessão da tarde e ninguém ficaria escandalizado. Mas,...           

Um comentário:

  1. Lindo filme!Daqueles que nos pegam de surpresa.
    O texto também está maravilhoso!
    Abraço!

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