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domingo, 14 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXXXIV)




Comprei uvas. Graúdas. Enchi uma travessa de vidro com água e deixei os cachos de molho durante um dia e meio. Espero que tenha sido suficiente para limpar os grãos e afogar o Covid-19.

Trouxe para casa uma sacola cheia de frutas. Peras, bananas, laranjas e meia dúzia de uma prima estranha das bergamotas. Estão todas lá na fruteira, devidamente higienizadas. Na pior das hipóteses, podem servir para que, usando dos talentos que não tenho, invente algo parecido com uma natureza-morta. Antes de mostrar ao mundo minhas obras-primas no campo das artes plásticas, preciso de umas aulas de desenho. Mas, como dizia um conhecido da família, o que vale é a intenção. Boas intenções não me faltam. As más – lamento informar, também tenho em quantidade.

Frutas sempre estiveram presentes na minha família. Mas, ao contrário de meus irmãos, que gostam de quase todas, tenho várias restrições. Sou o que eles chamam de enjoado. Sempre fui. É uma qualidade. Acredito nisso, mesmo que meio mundo discorde.

Detesto caqui, abacate, maracujá, açaí, mamão, melão, manga. Sabor, textura, consistência – são inúmeros os motivos para essas restrições. Em compensação, adoro cereja, framboesa, mirtilo, groselha, amora, morango, pêssego, jabuticaba, acerola, kiwi, cupuaçu, damasco, tangerina, figo, goiaba. Na lista das preferencias maiores, sorvete de cupuaçu e doces árabes com damasco são degraus na escada que leva ao paraíso. E doce de gila e sorvete de pistache, obviamente, mas esses dois são hour concours.



Na propriedade de meus avós, lá em Morrinhos, muitas árvores frutíferas: parreira, pessegueiro, macieira, pereira, goiabeira... Não me lembro de todas. Em época de colheita, a diversão se fazia presente, a camisa suja com o caldo das frutas, o olhar de reprimenda de quem tinha que lavar a roupa. Ah, tinha um butiazeiro enorme. Costumávamos abrir as castanhas com pancadas (pedra ou martelo).

Comi um pouco das uvas depois do almoço, lá na sacada. O vento estava avisando que o inverno começa no próximo sábado. Não sei se foram miragens produzidas pela luz fria do sol, fragmentos da infância atravessaram meu olhar. Senti saudades de um tempo que foi doce e azedo – assim como as frutas, o humor familiar era sazonal. Prefiro deixar esse sentimento proustiano de lado, frutas não são madeleines.   

Não posso mais cheirar as frutas no supermercado. Esse pequeno prazer está interdito. Há algo no ar além dos aviões de carreira, como dizia o Barão de Itararé, se referindo à situação política no governo getulista. Cerca de 80 anos se passaram e a frase voltou a ter importância. Os profetas são atemporais.


Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, o Barão de Itararé

Além da pandemia, muitas ameaças à democracia brasileira. Depois de uma safra eleitoral ruim, precisamos descascar o abacaxi. Alguns pedaços dessa fruta amarga estão causando doenças mais danosas do que o vírus que assola o mundo. Falta doçura.

Infelizmente, como lembrava o Barão de Itararé (outra vez): de onde menos se espera, daí é que não sai nada. As frutas apodreceram.  

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