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quinta-feira, 18 de julho de 2013

ITHACA ROAD

Estranhamento constante, amparado no espelhamento grego, mostrando-se insuficiente para garantir os pés no chão. Ruas de Sidney, Austrália, outro lado do mundo, passeio conforme algum mapa turístico. O encontro entre o passado e o presente dissolvendo dias de sol e afetos.

A aventura de produzir parágrafos longos – caudalosos, vinte, trinta frases separadas por vírgulas, invadindo o espaço da página em branco até encontrarem algum ponto, obstáculo gráfico intransponível, o fluxo interrompido provisoriamente, pausa breve, momentânea, até que uma nova frase se reinstale vorazmente, impulsionando a continuação narrativa – não podem ser considerados como tarefa trivial, ao alcance de qualquer um. O ritmo acelerado que acompanha a selvageria das orações descontinuas que constituem o parágrafo impede o nexo imediato do pensamento, que, na contramão, vai se (de)formando aos poucos, várias camadas se sobrepondo, umas em cima das outras, como um depósito desorganizado. O leitor perde o fôlego diante de tamanho atordoamento. Nada que lembre as proezas feéricas propostas por José Saramago, Marcel Proust e James Joyce. Nessa planície textual, há recusa das amarras da pertença. Embora sinta prazer em devorar miragens, referências e apropriações indevidas. Antropofagia básica. Base para a reinvenção. Solução para os impasses da estrutura narrativa. Alternativa contemporânea para esse beco sem saída em que deságuam todas as histórias de amor.

Ao mesmo tempo, cabe perguntar: a forma é mais importante que o conteúdo? Provavelmente, não. O contrário também não corresponde ao que importa. A intensidade de Ithaca Road impressiona. Fenômeno raro em romance brasileiro. Poucos conseguem avançar nas duas direções. Simultaneamente. Ao mesmo tempo, assusta. A brevidade do texto, 110 páginas, impede que determinadas demandas sejam contempladas. Inquietante volatilidade que poderia ter mais substância. As lacunas que povoam o enredo lembram imagem de meteoro que desaparece no horizonte. Bonito durante cinco segundos. Nada mais do que isso. Entrou em cena para semear dúvidas, sombras, instabilidades.

Paulo Scott
Mulher independente, que não conhece barreiras geográficas, um dia em Londres, outro em Dublin, namorado austríaco, Jörg, que está no Brasil, jornalismo investigativo, outra falcatrua terceiro-mundista a ser denunciada, Narelle, neozelandesa, mestiça de maori com europeu, sabe que não há futuro em esperar (vinte anos?) pela volta do irmão desaparecido. Não tem vocação para encenar a farsa de Vladimir e Estragon. Não nasceu para bordar colchas mortuárias – prefere comprá-las prontas em feirinhas de bairro. Não possui estoicismo suficiente para acumular noites de castidade – qualquer guerreiro viril ao alcance de seu corpo serve para aliviar tensões e tesões, e pouco se importa com sentimentos descartáveis logo depois de saciar a sede, tchau, foi bom, gostei (gozei) muito, amor é outro departamento.

Anna surge como um anjo da anunciação, a possibilidade de subverter o previsível. Espaço para inúmeras perguntas e alguns desenhos – vaticínios a respeito da maldição divina, oráculo que decifra a maldade humana, desumano horror que denuncia as falhas que acompanham o existir. Resistir, estratégia de sobrevivência, também se mostra um exercício de teimosia. 

Em um mundo que abomina o diferente, que exclui qualquer coisa que não siga padrões de comportamento ou de bons modos, Ithaca Road, apesar de não resolver algumas questões, se assemelha a uma ilha paradisíaca, perdida em um mar de tolices. A literatura brasileira agradece.   

Um comentário:

  1. ESPERANDO POR PAULO SCOTT, QUE SERÁ O CABEÇA DE UM CURSO DE ESCRITA CRIATIVA NO SESC-LAGES EM AGOSTO.

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