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terça-feira, 27 de agosto de 2013

A MORTE COMO EFEITO COLATERAL

O Brasil desconhece a literatura da Argentina. Frequentemente, fazemos questão de ignorar nuestros hermanos – exceto aqueles que conquistaram um lugar no Olimpo literário: Jorge Luís Borges, Julio Cortázar, Roberto Arlt, Adolfo Bioy Casares, Ernesto Sábato, Macedonio Fernández. Algumas vezes, não muitas, aceitamos que há um mínimo de talento em meia dúzia de semideuses: Ricardo Piglia, Martín Kohan, Alan Pauls, Juan José Saer, Mempo Giardinelli e Cesar Aira. Como se fossem filhos de um vizinho que brigou com nossos pais, fazemos de conta que os demais não existem. Na pior das hipóteses, talvez por apresentarem a face criminal dos filhos bastardos, em inconteste ato de generosidade verde-anil, cabe-nos fornecer abrigo para escritores do nível de Tomás Eloy Martinez, Rodrigo Fresán e Rodolfo Fogwill. Raríssimas vezes alguém se lembra de Osvaldo Soriano, talvez o mais divertido de todos os escritores argentinos. Alguns anos atrás, por força do marketing e da cegueira masculina, uma legião declarou adoração por Pola Oloixarac – esquecendo que a beleza é transitória, ao contrário do talento.

Nesse ritmo um pouco desafinado, que não se decide por samba, tango ou jazz, Ana María Shua está destinada à exclusão. Um de seus romances, A Morte como Efeito Colateral, foi publicado no Brasil em 2004. Passou completamente despercebido.
Ana Mária Shua

Ernesto (Eni) Kollody assiste a lenta morte do pai. Câncer no intestino. Temporada no hospital, várias cirurgias, pós-operatórios dilacerantes. Em um lugar não tão secreto do meu coração, eu desejei para papai uma morte muito doce, e nem por isso me senti culpado. O fim de tudo, a tranquilidade desejada, não acontece. Ao contrário, a vida se estende por muito tempo, uma eternidade retratada em 208 páginas, sem economizar detalhes ou sentimentos. Não é fácil para Eni aceitar que a história humana funciona em outro diapasão, diferente daquele que tinha sido imaginado. Essa falha nos planos multiplica os elementos desencontrados do enredo. Alguns bastante desagradáveis. O fracasso possui razoável nitidez, principalmente quando, depois de tantos anos, confrontado com a força paterna reflete aquilo que costuma ser negado com veemência.  Estou próximo demais da velhice para pensar na morte – em qualquer morte – apenas como alívio. Tenho medo.

Buenos Aires. Futuro não muito distante. Mundo apocalíptico. Classes econômicas em constante atrito. Ricos escondidos em condomínios fechados. Vivendo em separado dos pobres – que a todo instante saem às ruas para morrer pelo que nunca terão. A violência, amparada pelas drogas e a ausência do Estado, insufla a barbárie – uma palavra que causa calafrios mesmo antes de ser pronunciada.

Personagem-narrador, Eni dirige o seu relato para uma mulher ausente. O monólogo interior disfarçado como se fosse uma longa carta, entrecortada por capítulos, reflete as sutilezas que devoram o discurso. A descrição pretérita supera os momentos de ação. As pausas no ritmo permitem a respiração, um golpe astuto para não sufocar o leitor com tamanha angústia. A proposta filosófica do pensar e falar se destaca e adquire relevância mais significativa do que o fazer. Assim era o nosso contato: a paixão era sua, os excessos emocionais; a mim correspondia certa frieza sorridente, uma calma de esgrima intelectual que me permitia observar seus flancos descobertos, e poderia ter me conduzido à estocada definitiva se não fosse porque, de repente, por uma hábil torção de discurso, seu entusiasmo fazia voar as palavras-espadas pelo ar e já não era esgrima, mas uma luta de corpo a corpo na qual você sempre ganhava.

Eni, ao mesmo tempo em que descreve a tirania patriarcal, a demência da mãe, a ausência de maturidade da irmã, vai tecendo a história da decadência familiar. Com afirmações contundentes, essa espécie de boneca enrugada, como um trapo mal passado, de cor amarelada e olhos desesperados, que tinha sido nossa mãe, estabelece o andamento sem comiseração do seu relato. Quer transmitir a quem endereça o seu texto o máximo de “verdade” que seja possível. 

Maquiador profissional, Eni está escrevendo um roteiro de cinema. Quem o contratou foi Goransky – um milionário que vive imerso em seu próprio mundo de ficção, entre as imagens dos seus sonhos. Ou seja, um sujeito que se realiza intelectualmente no cinema que nunca filmará. Mas que se diverte imaginando essa possibilidade. É através do imobilismo que imagina filmes de aventuras, romances, ficções científicas – todos situados na Antártida. O roteiro, peça mutante, que nunca assume forma objetiva, instrumentaliza a brincadeira.

Meu pai cheira a merda. Entre os odores medicinais e antissépticos, odores perfumosos, da Unidade de Terapia Intensiva, é possível sentir um suave rastro que vai se acentuando ao se aproximar de sua cama. No mundo das sensações, a morte se apresenta de maneiras diferentes. Talvez a mais cruel seja a que chamamos “vida”. Sofrimento, reclamações, desgostos e suplícios se misturam em proporções desiguais. Contra isso não há nenhum anestésico. A partir de certa idade, de certo grau de invalidez, a verdadeira prisão é o corpo e qualquer outro confinamento não é nada mais que uma compensação menor.

Quando o pai pede para morrer em casa, Eni – por alguma razão pouco plausível ou por desejo de vingança inconsciente – resolve sequestrá-lo da Casa de Repouso. Quer oferecer uma morte digna ao velho torturador. A sequência dos eventos mostra que – mais uma vez – nada ocorre como planejado. De qualquer forma, uma metáfora significativa da degradação humana.

A Morte como Efeito Colateral, exercício técnico de romance realista, apresenta uma surpresa a cada página. E todas – as surpresas e as páginas – são ótimas. O que significa dizer – embora isso nada queira dizer – que o patético, assim como o humor negro, acompanha a morte.



TRECHO ESCOLHIDO


Em meu desespero de compartilhar cm você tudo o que nos era possível compartilhar, falei muitas vezes do meu pai. Você me ouvia sem me escutar, sem impaciência entretanto, e eu nunca consegui adivinhar se você ficava entediada. Em compensação, eu me precipitava sobre cada resto, cada vaga palavra dita por você que pudesse me dar mais informações sobre sua vida, seus gostos, sua história. Saber, por exemplo, que você sempre, desde muito nova, odiou a cor verde foi um dado surpreendente. Cada vez que escolhia um presente para você, nosso segredo me obrigava a refletir sobre sua personalidade: meus presentes clandestinos tinham que passar por escolhas suas. Era fácil presenteá-la com livros, discos, vídeos de clássicos do cinema ou desses filmes velhos e ruins que por algum motivo nós dois recordávamos e que eu sabia como conseguir. Mas às vezes eu precisava dar-lhe um presente que me levasse mais para perto do seu corpo. Eu me decidia, então, por uma echarpe, um cinto, uma camisa de seda de qualquer cor, desejando que você apreciasse com quanta intensidade eu evitava o verde.

Eu falei muitas vezes do meu pai, mas as palavras impõem limites. É preciso ter participado – por engano ou interesse – nos jogos que meu pai propõe, e nos quais só ele ganha, para entender certas estruturas da realidade que a linguagem não pode imitar. Falei demais: era lógico que o poder dele sobre mim aguçava sua curiosidade. Descansando com sua cabeça sobre meu ombro e um meio sorriso distraído, você me escutava muito mais e muito melhor do que eu nunca me atrevi a desejar.

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