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sexta-feira, 16 de agosto de 2013

O ANJO ESMERALDA: EXERCÍCIOS DE VIOLÊNCIA



Leon Zhelezniak, ciente de que Os dias eram todos iguais; os filmes, não, gasta a vida e as esperanças dentro das salas de cinema. Três, quatro, cinco sessões por dia. Em algum momento impreciso, há um desvio de rota. Leo (é assim que sua companheira, Flory, o chama) descobre – como se fosse o reflexo de um espelho – que outras pessoas também vão ao cinema com frequência. Uma mulher se destaca na multidão. Alterado o ordenamento obsessivo, Leo começa a persegui-la. Vai aos filmes que ela escolhe, senta perto, quer estar perto dela, quer entender porque ela vai ao cinema. Um dia, dentro do banheiro feminino, conversam. Ou melhor, se separam. Certos filmes não comportam finais felizes.

A Famélica, um dos nove contos da coletânea O Anjo Esmeralda, de Don DeLillo, descreve o desespero tranquilo de Leo, que, na beira do precipício emocional, está prestes a pular na direção do desconhecido. Entre o real e o imaginário sobram poucas escolhas. Esse também é entendimento das irmãs de caridade Edgar e Grace, personagens do conto homônimo ao título do livro e que se refere a uma situação peculiar: a vida marginalizada das crianças nas periferias urbanas. Enfrentando os múltiplos perigos, ladrões, traficantes, estupradores, cabe ajudar. Ajudar ao Outro, mesmo que à força, como quer irmã Grace. Ajudar ao Outro, com doçura, como quer Irmã Edgar. Nos dois casos, a vida foge pelo vão dos dedos. Outro grafite irá decorar o muro das lamentações na periferia de uma grande cidade. A salvação humana não depende de boas intenções. Ou de pequenos milagres – tábua de salvação para almas corroídas pela brutalidade.

A barbárie humana está visível nas pinturas sobre a morte de Ulrike Meinhof e Andreas Baader. Nesse cenário, composto por tristeza incontida, ausência de entendimento, perplexidade, o encontro amoroso que não se completa. Não se trata de um corpo em contato físico com outro corpo. Prazeres circunstanciais são insuficientes para delimitar a vida e as promessas vazias que a agasalham. A solidão se alimenta de momentos truncados, ausências, pequenas tragédias, banalidades imperfeitas. Situação difícil de aceitar. Impossível acertar o tom desse drama que se repete a cada instante, agulhada na carne, dor intensa.

Os valores do capitalismo (poder econômico, ausência de escrúpulos, mercantilização sexual) se expõem em Criação. Casal em férias não consegue voltar para casa. Momento repleto de mal-entendidos e apetites insuspeitos. Traição amorosa. A vida de vários personagens se fragmentando. Como cobras que trocam de pele, deixam destroços pelo chão, vestígios do que se perdeu.

Nos nove contos de O Anjo Esmeralda os sentimentos são substituídos pela aridez. Não há envolvimento. O distanciamento narrativo incomoda – é o efeito desejado, marca registrada da boa literatura.


Don DeLillo, um dos mais importantes escritores estadunidenses, escreveu Submundo, Ruído Branco, Cosmópolis, Os Nomes, Homem em Queda, entre outros romances de incontestável qualidade.

 

TRECHO ESCOLHIDO

Flory tinha opiniões a respeito da vocação de Leo. Naqueles primeiros anos, entre um e outro trabalho como atriz, locutora, vendedora e passeadora de cachorro, de vez em quando ela o acompanhava, às vezes três filmes no mesmo dia, até mesmo quatro, a novidade daquilo, a loucura inspirada da coisa. Um filme pode ser prejudicado pela pessoa que está assistindo conosco, ali no escuro, um efeito cascata, a cada sequência, a cada tomada de cena. Ambos sabiam disso. Sabiam também que Flory não faria nada que comprometesse a integridade do projeto dele – nada de cochichos, cutucadas, sacos de pipoca. Mas ela não exagerava sua consciência de premeditação cuidadosa. Não era uma pessoa banal. Compreendia que ele não estava transformando um entretenimento rotineiro numa espécie de obsessão infernal.

O quê, então, ele estava fazendo?

Flory propunha teorias. Ele era um asceta, dizia ela. Essa era uma das teorias. Haveria algo de santo e louco em seu empreendimento, um toque de abnegação, de penitencia. Ficar sentado no escuro reverenciando imagens. Os pais dele eram católicos? Os avós dele iam à missa todo dia, antes do raiar do dia, em alguma aldeia nos Cárpatos, e ficavam repetindo as palavras de um padre com uma longa barba branca e um manto dourado? Onde ficavam mesmo os Cárpatos? Flory falava tarde da noite, normalmente na cama, os corpos em repouso, e ele gostava de ouvir essas ideias. Eram ficções impecáveis, sem que ela fizesse nenhuma tentativa de saber de que modo ele via a situação. Talvez ela soubesse que era algo que teria de sair pelos poros, mais uma febre na pele do que o produto de uma mente consciente.

Ou então Leo era um homem que estava fugindo do passado. Ele precisava dissipar em sonhos uma lembrança lúgubre da infância, alguma desventura da adolescência. Os filmes são sonhos que temos acordados – devaneios, dizia ela, uma proteção contra o coice daquela maldição antiga, aquela praga. Flory parecia estar recitando as falas de uma remontagem desastrosa de uma peça que outrora fizera sucesso. O som terno de sua voz, o faz de conta que ela conseguia desenvolver, por vezes perturbava Leo, que começava a sentir uma ereção a zumbir por baixo das cobertas.

Ele estava no cinema para ver um filme, perguntava ela, ou talvez, de modo mais restrito, mais essencial, apenas para estar no cinema?   


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