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terça-feira, 6 de agosto de 2013

IMPASSES LITERÁRIOS E NARRADORES MÚLTIPLOS

(...) nunca tive paciência para esses romances escritos como um quebra-cabeça. 

A frase pinçada no meio de O Gato Diz Adeus, novela de Michel Laub, publicada em 2009, sinaliza para um dos mais significativos impasses da literatura brasileira: será possível contar uma história banal sem que se assemelhe com uma história banal?

A história da literatura comprova que – nas situações de crise – a imaginação entra em cena. Testando alternativas. Ou reciclando alguns truques. Infelizmente, nem sempre há vitória. Aliás, a lista de frustrações é muito mais ampla do que a de sucessos. Habitualmente, a inventividade acompanha o malogro – principalmente quando ambiciona ser mais inteligente do que deveria (ou poderia).

Nesse sentido, a aparente astúcia dos pseudo-discípulos de William Faulkner e James Joyce não consegue entender o grau de perigo que envolve o canto das sereias (como no célebre episódio da homérica Odisseia). Diante da possibilidade de obter glória através de efeitos feéricos, poucos escritores possuem a presença de espírito do trapaceiro Ulisses – que resistiu às tentações amarrando a si mesmo no mastro do navio – e aceitam a anestesia proposta pela maviosa música.

Talvez o melhor exemplo da superficialidade que acompanha a pirotecnia narrativa esteja no uso polifônico do discurso textual. Com o auxílio dispersivo de uma multidão de narradores, a história se transforma em espelho estético do discurso que anuncia/enuncia o empobrecimento das ações narrativas. Nada acontece, exceto a repetição cansativa da mesma situação. Cada narrador propõe uma perspectiva diversa, dispersa, divergente, descontínua.

Ao mesmo tempo em que a linguagem organiza o real, o falsifica. E isso significa que o caráter humano da literatura poucas vezes se mostra capaz de entender a violência do discurso. A prática social (e, por extensão, literária) está embebida em rancor, ódio e sarcasmo – embora insista em declarar que caminha na direção oposta. Manejar esse paradoxo exige muita criatividade. Inclusive porque o problema maior da literatura não está nas contradições propostas pela linguagem – está na omissão ideológica. Todo texto é uma declaração política, uma forma de exercer o poder.  

Michel Laub, considerado como uma das vozes mais significativas da literatura brasileira contemporânea, tentou, nas 78 páginas de O Gato Diz Adeus, contar uma história amorosa. Dispensando a fórmula clássica (começo, meio e fim – nessa ordem), apostou na estilhaçar narrativo e no monólogo interior. Obteve a vacuidade de quatro vozes narrativas (Sergio, Roberto, Márcia e Andreia), que se dissolvem em solilóquios narcisistas. Na ânsia incontrolável de defenderem pontos de vista pessoais, multiplicam o infindável conflito de estar no mundo através do dramático.

A voz pretérita, oblíqua, utilizada por cada um dos narradores não resgata a memória, tampouco reorganiza as imagens do passado. No máximo, estabelece os principais temas da novela: paternidade, luto afetivo e agressões intrafamiliares. Todas essas questões são distorcidas sem o mínimo pudor. As promessas que a vida não manteve ressurgem através de fragmentos. O espaço lacunar se expande. A perda promove o litigio – e o distanciamento afetivo. A demanda amorosa se confunde com a insanidade porque se manifesta através da linguagem unilateral. Falta continuidade e complementariedade. Cada um dos narradores se apropria do espaço textual para estabelecer o domínio territorial e, ao mesmo tempo, ignorar o Outro como interlocutor. Somados não representam o todo, separados se parecem com um disco riscado, que repete ad infinitum uma arenga sem substância.


As boas intenções, assim como o gato do título, só aparecem nas primeiras páginas. Em O Gato Diz Adeus, as pontas soltas nunca se encontram – pedaços de um vaso partido que não podem mais ser colados. Sobram palavras, faltam ações.

William Faulkner, uma das influências de Michel Laub

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