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segunda-feira, 25 de novembro de 2013

LIGUE OS PONTOS



Quando Oswald de Andrade escreveu, entre tantos outros poemas geniais,

Amor 

Humor



provavelmente não imaginou que estava desbravando o sertão em que o romantismo e o parnasianismo haviam escondido a poesia brasileira. Como ares de bandeirante, o paulista mostrou aos embasbacados leitores da época que era possível se distanciar da seriedade e, ao mesmo tempo, se aproximar da essência poética. Mais do que isso, revelou – de maneira surpreendentemente lúcida e lúdica – que é possível rejeitar essa futilidade que é o rimar flor e dor. Disse, com todas as letras que, na melhor das hipóteses, esse tipo de desacerto deve ser aceito apenas como pirraça ou o efeito de várias doses de cachaça.

Como o Brasil sempre está uns dez anos atrasado com qualquer coisa que signifique modificar o conservadorismo, demorou um pouco para que a circunspecção e a prudência fossem abatidas em pleno voo por versos espirituosos, estrofes inteligentes, gags que se somam umas às outras. E foi na esteira dessa explosão de inventividade que – algum tempo depois – surgiram diversos poetas magistrais, em diversos momentos denominados marginais. Ao mandar a seriedade para a puta-que-a-pariu sem o menor constrangimento, convidam o leitor para contemplar a vida como se fosse algo engraçado. Felizmente. A poesia brasileira não precisa de gente besta. 

As situações divertidas que estão escondidas em Ligue os Pontos, de Gregório Duvivier, constituem uma lâmina especular para o lirismo subversivo que não se contenta em – apenas – expor emoções ou algumas ideias. Inclusive porque o poeta tem dicção própria docemente embriagada pela tradição pouco comportada de uma poesia  que quer mais, muito mais. Quer agrupar afeto, tesão, cotidiano e vida.

se o leite desnatado por acaso caísse

da sua mão no chão da seção de laticínios

bastava eu perguntar seu nome e fazer

alguma piada envolvendo a expressão chorar 

pelo leite derramado e nós dois teríamos

uma longa-vida eu e você mas você já está

no setor de limpeza e eu penso que se a água

sanitária espirrasse no seu vestido eu poderia

dizer sou advogado e isso vale um processo 

ou se você tivesse dúvidas quanto à validade

de um queijo minas eu sei tudo sobre queijo 

minas ou à madureza de um abacaxi basta 

puxar uma folha da coroa mas agora

é tarde você já está no caixa passando produtos

que apitam como um eletrocardiograma.   



Nas urgências propostas pelo a-pós-a-moderna-idade, o desencontro amoroso passa lotado como se fosse um ônibus urbano no final de tarde. O poeta não pensa assim. Ciente que a trivialidade diária está composta por inúmeras histórias, quer encontrar o invisível aos olhos e, como se fosse uma brincadeira de criança, vincular uma narrativa com outra. Um exemplo dessa tese está presente na imagem surpreendente, ou melhor, extraordinária, que aparece no poema Ligue os Pontos:

enquanto você dormia liguei 

os pontos sardentos das suas 

costas na esperança de que 

a caneta esferográfica revelasse 

a imagem de algum ser mitológico 

de nome proparoxítono o mapa 

detalhado de algum tesouro 

submerso formasse quem sabe 

alguma constelação ruiva oculta 

na epiderme e me deparei 

com o contorno de um polígono 

arbitrário que não me fornecia 

metáforas que não apontavam direções 

simplesmente dizia: você está aqui.


Gregório imagina, em Gênese II, uma versão personalíssima da criação humana, mistura de piada e verdade gramatical. Tomando como base a linguagem coloquial, recusa os excessos mentais. E se aproxima do leitor, com a mão estendida, oferecendo amizade e poesia de excelente qualidade.

no princípio era o verbo 

uma vaga voz sem dono 

vagando pela via láctea.



depois veio o sujeito 

e junto com ele todos 

os erros de concordância.


Infelizmente, nem tudo é festa, alegria ou deslumbramento. Atrás das gargalhadas, a vida costuma se apresentar com os trajes da melancolia, como Gregório anota ao escrever que todos / seguem carregando suas tristezas / dentro de sacolas de plástico. No único poema com dedicatória (p/ rafael mascarenhas), a ausência recebe um tratamento especial, forma criativa de exorcizar o luto.

quando se perde um braço ou uma perna 

o membro perdido continua a coçar, reza

a lenda e a revista superinteressante, e eu

que nunca amputei um braço ou uma perna

sinto dia sim dia não a gangrena dos amigos

que eu perdi de vista porque foram morar longe

cansaram-se de mim ou morreram de desastre


Ligue os Pontos une engenhosidade e humor, lirismo e alguns achados de excelente qualidade. Enfim, como compete aos livros de poesia, um exercício de paixão.

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