Marília: gostei de vários poemas de teu livro.
Não sei se essa é a forma adequada para
iniciar duas ou três observações sobre a tua poesia. Também não sei se sou a pessoa adequada para fazer isso. De qualquer maneira, inquestionavelmente,
mereces mais do que isso. Muito mais. Talvez o meu percurso de leitor de teu
livro tivesse melhor sorte se estivesse edificado em algum tipo de metáfora
complicada, voo sobre o infinito que transcende o pós-humano – independente do
que seja isso ou possa vir-a-ser. Como alternativa havia a possibilidade de
tecer volumoso e sofisticado comentário técnico – desses que agregam inúmeras
referências teóricas com quinhentas dúzias de frases prontas. Nenhum dessas opções
conseguiu me entusiasmar. Perdoe-me, decidi
enveredar pelo caminho menos trilhado. Inclusive porque o meu relacionamento
com a poesia ocorre em um nível mais selvagem e, portanto, mais carinhoso. Sou
da turma dos delírios passionais, outrora denominados tapas e beijos.
Leitor voraz de Roland Barthes e Manuel
Bandeira e Walter Benjamin e Susan Sontag (não necessariamente nessa ordem), acredito que os
arrepios profundos que surgem do contato da pele com a pele são elementos
constitutivos da poesia. Nesse sentido, declaro absoluto repúdio contra a
distância (física, amorosa, temporal, literária). Prefiro os engates e os engastes
entre os vários metais que os ourives (também chamados de poetas) usam para
formar a aliança entre a vida e o afeto.
De qualquer forma, antes que surja algum
mal-entendido, urge deixar claro que isso não significa que há possibilidades de
confundir sanidade com santidade. Na atualidade, o perigo se concentra nas
diferenças que contornam os conceitos de civilização e barbárie. Por isso, e outras
coisas, muitas outras, gostei da releitura que você fez do poema de Konstantinos
Kaváfis (que li, pela primeira vez, vários anos atrás, na tradução de José Paulo
Paes).
Marília, em um mundo que têm
dificuldades para decidir se prefere estar ao lado de Bárbara Sukowa ou de Bárbara Cartland, somente a reunião de
humor, senso crítico e perspectiva histórica da situação das mulheres poderia ter
resultado em um achado polissêmico para as palavras bárbara e barbie. E o
mais incrível é que – salvo engano – ninguém havia percebido antes as
possibilidades de expansão semântica desses dois vocábulos. Os trocadilhos se
sucedem em uma espécie de efeito cascata. Não consigo ler o poema sem
exclamar o quanto bárbara (nos dois sentidos!) se mostra a proposta política de
colocar as barbies na linha de tiro, seja como objeto de discussão pelo
comportamento (superestrela virgem), seja como elemento delator da sociedade
de consumo (apertada em corpetes e botas militares). Em todos os momentos, cabe formular a
pergunta retórica: o que será de nós sem as barbies? Difícil superar tamanho
desafio. Mesmo quando o poema conduz às questões principais de um discurso, que muitos preferem negar visibilidade, há constante contraste pulsando entre
o passado e o presente, entre o futuro e o imaginário. No mundo em que vivemos,
a maioria prefere passar pelos obstáculos sem ferir o suculento / músculo
transbordante (como você menciona em outro poema). O que quero dizer é que foi
uma surpresa agradável, em um mundo que confunde a poesia com o romantismo,
onde muita gente vive lendo o bodelér fast-food, ver o “real” (seja lá o que
isso for) sendo revelado por versos tão vigorosos.
Marília, teu livro está repleto de
poemas em que a busca por uma linguagem criativa reconfigura a paisagem
poética. Mesmo que, nessa aventura (alavanca que move o sonho), seja
necessário correr atrás da folha que voou. Ou se recusar a ficar perdido /
no beco / imóvel. São imagens delicadas, repletas de sutilezas, oscilando entre
o Oriente e o Ocidente, entre a palavra e o silêncio, que expressam alguns dos
elementos mais significativos de tua poesia. Contraditoriamente, nenhum dos
teus leitores consegue ignorar a algaravia que está escondida dentro de alguns dos poemas.
Em diferentes momentos, Konstantinos Kaváfis, Elizabeth Bishop, Fernando
Pessoa, Bertolt Brecht, Homero, Bashô, e tantos outros, sussurram, gritam, sugerem,
discursam, seduzem. Em teus poemas, Marília, as influências não produzem
angústia; ao contrário, rompem as pausas, ignoram o medo, celebram a força do
verso.
Para terminar, mesmo tendo tantas outras
considerações a fazer, quero dizer que concordo com a tua tese de que escrever
poesia é demitir a vida todos os dias, inclusive pela possibilidade / de
rachar todo o edifício. É uma proposta irrecusável, pois trabalho de poeta /
é buscar sentido no escuro / (ele não sabe tudo / a vida, osso duro).
Beijos,
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