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quarta-feira, 20 de agosto de 2014

CARTA ABERTA PARA MARÍLIA KUBOTA


Marília: gostei de vários poemas de teu livro.

Não sei se essa é a forma adequada para iniciar duas ou três observações sobre a tua poesia. Também não sei se sou a pessoa adequada para fazer isso. De qualquer maneira, inquestionavelmente, mereces mais do que isso. Muito mais. Talvez o meu percurso de leitor de teu livro tivesse melhor sorte se estivesse edificado em algum tipo de metáfora complicada, voo sobre o infinito que transcende o pós-humano – independente do que seja isso ou possa vir-a-ser. Como alternativa havia a possibilidade de tecer volumoso e sofisticado comentário técnico – desses que agregam inúmeras referências teóricas com quinhentas dúzias de frases prontas. Nenhum dessas opções conseguiu me entusiasmar.  Perdoe-me, decidi enveredar pelo caminho menos trilhado. Inclusive porque o meu relacionamento com a poesia ocorre em um nível mais selvagem e, portanto, mais carinhoso. Sou da turma dos delírios passionais, outrora denominados tapas e beijos.

Leitor voraz de Roland Barthes e Manuel Bandeira e Walter Benjamin e Susan Sontag (não necessariamente nessa ordem), acredito que os arrepios profundos que surgem do contato da pele com a pele são elementos constitutivos da poesia. Nesse sentido, declaro absoluto repúdio contra a distância (física, amorosa, temporal, literária). Prefiro os engates e os engastes entre os vários metais que os ourives (também chamados de poetas) usam para formar a aliança entre a vida e o afeto.

De qualquer forma, antes que surja algum mal-entendido, urge deixar claro que isso não significa que há possibilidades de confundir sanidade com santidade. Na atualidade, o perigo se concentra nas diferenças que contornam os conceitos de civilização e barbárie. Por isso, e outras coisas, muitas outras, gostei da releitura que você fez do poema de Konstantinos Kaváfis (que li, pela primeira vez, vários anos atrás, na tradução de José Paulo Paes).

Marília, em um mundo que têm dificuldades para decidir se prefere estar ao lado de Bárbara Sukowa ou de Bárbara Cartland, somente a reunião de humor, senso crítico e perspectiva histórica da situação das mulheres poderia ter resultado em um achado polissêmico para as palavras bárbara e barbie. E o mais incrível é que – salvo engano – ninguém havia percebido antes as possibilidades de expansão semântica desses dois vocábulos. Os trocadilhos se sucedem em uma espécie de efeito cascata. Não consigo ler o poema sem exclamar o quanto bárbara (nos dois sentidos!) se mostra a proposta política de colocar as barbies na linha de tiro, seja como objeto de discussão pelo comportamento (superestrela virgem), seja como elemento delator da sociedade de consumo (apertada em corpetes e botas militares).  Em todos os momentos, cabe formular a pergunta retórica: o que será de nós sem as barbies? Difícil superar tamanho desafio. Mesmo quando o poema conduz às questões principais de um discurso, que muitos preferem negar visibilidade, há constante contraste pulsando entre o passado e o presente, entre o futuro e o imaginário. No mundo em que vivemos, a maioria prefere passar pelos obstáculos sem ferir o suculento / músculo transbordante (como você menciona em outro poema). O que quero dizer é que foi uma surpresa agradável, em um mundo que confunde a poesia com o romantismo, onde muita gente vive lendo o bodelér fast-food, ver o “real” (seja lá o que isso for) sendo revelado por versos tão vigorosos.

Marília, teu livro está repleto de poemas em que a busca por uma linguagem criativa reconfigura a paisagem poética. Mesmo que, nessa aventura (alavanca que move o sonho), seja necessário correr atrás da folha que voou. Ou se recusar a ficar perdido / no beco / imóvel. São imagens delicadas, repletas de sutilezas, oscilando entre o Oriente e o Ocidente, entre a palavra e o silêncio, que expressam alguns dos elementos mais significativos de tua poesia. Contraditoriamente, nenhum dos teus leitores consegue ignorar a algaravia que está escondida dentro de alguns dos poemas. Em diferentes momentos, Konstantinos Kaváfis, Elizabeth Bishop, Fernando Pessoa, Bertolt Brecht, Homero, Bashô, e tantos outros, sussurram, gritam, sugerem, discursam, seduzem. Em teus poemas, Marília, as influências não produzem angústia; ao contrário, rompem as pausas, ignoram o medo, celebram a força do verso.

Para terminar, mesmo tendo tantas outras considerações a fazer, quero dizer que concordo com a tua tese de que escrever poesia é demitir a vida todos os dias, inclusive pela possibilidade / de rachar todo o edifício. É uma proposta irrecusável, pois trabalho de poeta / é buscar sentido no escuro / (ele não sabe tudo / a vida, osso duro).

Beijos,

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