Mansfield Park, terceiro dos seis
romances de Jane Austen, pode ser lido de diversas formas. As principais possibilidades
são fábula romântica, tratado moral ou discussão econômica. Todas as
alternativas estão corretas. Ou erradas. Depende do olhar. No entanto, mesmo os
leitores mais gentis não conseguem omitir que o narrador fornece uma
importância exagerada ao dinheiro no andamento narrativo. O assunto surge no
primeiro parágrafo da narrativa: Cerca de trinta anos atrás, a Srta. Maria
Ward, de Huntingdon, com apenas sete mil libras de dote, teve a sorte de
conquistar Sir Thomas Bertram, de Mansfield Park, no condado de Northampton, e
com isso elevar-se ao status de nobreza como esposa de um baronete, com todos
os confortos e privilégios de uma bela propriedade e alta renda. Depois, nas
centenas de páginas do romance, a maioria dos acontecimentos importantes se
desenvolve em torno das questões financeiras. Ao comentar sobre algumas
famílias – dessas em que os filhos e as filhas são numerosos e faltam recursos
para salvar todos –, a discussão surge de forma absolutamente inequívoca: Não
há no mundo tantos homens ricos quanto mulheres bonitas que os mereçam. Em
outras palavras, o amor deve ser entendido como um sentimento secundário –
principalmente para aquelas pessoas que não possuem heranças a receber.
Cena de uma adaptação inglesa |
Escrito em 1814, o romance tem como eixo
fulcral Fanny Price, agregada da família Bertram (que é constituída por Thomas
Bertram, Maria Bertram e os filhos Tom, Edmund, Maria e Júlia). Aos dez anos de
idade, seus pais a entregaram aos parentes abastados. Tomando como base esse
tipo de informação, Mansfield Park poderia ser considerado como uma versão caótica
de um conto de fadas ruim – desses que misturam maus-tratos, princesas sem
charme e príncipes falidos. Não o é. Definitivamente, Mansfield Park não pode
(não deve!) ser lido como um texto aspergido com baldes de
água-de-flor-de-laranjeira. Embora a figura de Sra. Norris, irmã de Maria
Bertram, e, consequentemente, tia de Fanny, se pareça – e muito – com uma bruxa
malvada. A viúva do Sr. Norris, pastor da Igreja Anglicana, sabia tão bem
poupar o seu quanto gastar o dos amigos. Esse parece ser o seu objetivo
principal em todas as situações que ocorrem na mansão, ao mesmo tempo em que procura
diminuir a importância da sobrinha – que considera um ser inferior, incapaz de
corresponder ao conforto que lhe estava sendo oferecido.
Fanny Price não é um personagem
simpático. Poucos leitores gostam dela. Ou de seu comportamento. Além de ter
problemas de saúde, na vida diária jamais toma atitudes que possam desagradar os
parentes. (...) sentia-se desamparada da mesma forma e encontrava algo a temer
em cada pessoa e lugar. Nos momentos de crise tergiversa, foge, deixa que
decidam em seu lugar. Usualmente, com um olhar de carinhosa dependência de sua
boa vontade, ela [cede]. Falta-lhe orgulho próprio. Acredita que seu lugar na
escala social dos moradores de Mansfield Park está limitado por diversos
fatores. Essa retração tem compensação no aguçado poder de observação
que desenvolve e permite que perceba antecipadamente todas as ações dos
outros personagens.
Jane Austen (1775-1817) |
Depois que Sir Thomas Bertram partiu
para Antígua, nas Índias Ocidentais, para resolver uma série de negócios de
singular importância para o futuro familiar, o tédio tomou conta de Mansfield
Park. Tom, na companhia de Yates, um amigo, sugere a montagem de uma peça de
teatro como uma forma de romper com a inércia e promover um pouco de diversão
para todos. Participam do projeto Tom, Maria, Júlia, Yates, Rushworth (um
vizinho), os irmãos Henry e Mary Crawford (que estão de visita aos Grant,
parentes que residem próximos a Mansfield Park). Edmund tenta resistir à
pressão, mas acaba sucumbindo. Fanny se recusa a participar, pois acredita que
Sir Thomas desaprovaria.
Sir Thomas volta inesperadamente e
decreta o fim do brinquedo familiar. No entanto, não consegue impedir alguns
conflitos. A disputa pela progenitura entre Tom e Edmund, embora velada, se
torna mais nítida. A Sra. Norris perde um pouco de seu prestígio com Sir Thomas
(que muda o foco de suas atenções e passa a tratar Fanny com grande afeto). A
vaidade de Henry Crawford só se contenta quando consegue chamar a atenção de
Maria e Júlia – que se tornam rivais e passam a disputar a atenção do rapaz.
Rushworth, que está apaixonado por Maria, não possui inteligência para perceber
as nuances que envolvem essa agitação. Em determinado momento, Edmund diz: se
esse homem não tivesse doze mil [libras] por ano, seria um sujeito bastante
estúpido.
A peça de teatro foi cancelada, mas o jogo
especular entre o real e o aparente, entre o que acontece fora de cena e o que
é encenado, está presente em quase todos instantes: Verniz e dourados podem
esconder muitas manchas. Não podendo ter Henry Crawford, Maria aceita se casar
com Rushworth. Ou melhor, desposa a fortuna de Rushworth. Julia vai viver com o
casal, em Londres. Tom se retira de cena. Edmund se retira de cena – imaginando
estar apaixonado por Mary Crawford. Tom reaparece – doente. Henry Crawford
imagina que está apaixonado por Fanny e propõe casamento. Considerando que a
sobrinha jamais encontrará um pretendente com tamanha riqueza, Sir Thomas fica
irritado com a recusa – e, como uma forma de castigo, manda Fanny passar alguns
meses com sua mãe, em Portsmouth, período em que ela Vivia de cartas e passava
o tempo todo entre os sofrimentos de hoje e aguardava os de amanhã. Essa
avalanche de acontecimentos sem o menor sentido parece encaminhar o romance para
um final inconclusivo. A ilusão se desfaz rapidamente diante da habilidade
narrativa de Jane Austen – que vai encaixando lentamente as peças do quebra-cabeça,
elucidando uma a uma as questões nebulosas.
Talvez o ponto mais interessante da
narrativa seja o suspense sobre o destino de Fanny Price. Em muitos momentos, a
partir da metade da narrativa,o embate entre a sutileza e o mal-entendido
torna-se inevitável. O leitor se pergunta se a moça vai sucumbir ao charme, ao
assédio e ao dinheiro de Henry Crawford. Como muitas coisas estão em jogo – inclusive
a possibilidade de modificar a situação econômica de sua família –, somente o caráter
determinado de Fanny consegue resistir às tentações. E elas, as tentações, são
inesgotáveis. No entanto, Era como uma brincadeira de sentir medo.
Todos os maus pressentimentos se revelam
verdadeiros no momento em que Fanny toma conhecimento que Maria Rushworth abandonou
o marido e fugiu com Henry Crawford. Ninguém esperava por esse escândalo
familiar – que se completa no momento em que Julia também “dá um passo errado”
e se une com Yates. Curiosidade e vaidade se uniram, e a tentação de um prazer
imediato foi forte demais para um espirito desabituado a fazer qualquer
sacrifício à retidão, anota o narrador.
Sir Thomas finalmente percebe que os
seus filhos que se comportam inadequadamente. As exceções são Edmund e Fanny, a
filha adotiva. Justamente aqueles que não possuem direito à herança familiar. E
que precisam de ajuda para sobreviver em um mundo onde as aparências e o dinheiro
substituem o caráter e a honestidade.
Mansfield Park é um livro sem paixão.
Embora pareça contraditório, como todo produto da época em que foi escrito,
advoga o império do amor, da bondade e da inteligente. Seguindo a fórmula
atemporal das estruturas narrativas românticas, está repleto de entraves,
complicações e interditos. Para que o triunfo se estabeleça necessário se faz
superar essas dificuldades. Sendo as questões financeiras o obstáculo mais
importante. Uma grande renda é a melhor receita para a felicidade, parece ser
o dístico moral que sobressai nessa confusão. Fanny Price discorda. Mas, como nada faz para
protestar (exceto nos momentos em que não há alternativa), cabe a Edmund
descobrir que Não lhe restava tempo para ser infeliz e que muitos segredos
estão guardados no interior de um coração apaixonado.
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