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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

ROMANCES E CONTOS – uma discussão proposta por Ali Smith


Para fins didáticos, imaginemos um sujeito que passou parte de sua vida lendo sobre teoria da literatura. Claro, na linha divisória entre a realidade e a ficção, ele não entendeu muitas coisas – e nunca vai entender –, seja porque estão além do seu alcance, seja porque não merecem estar ao seu alcance. Mas, durante uma fração do tempo, enquanto estudava naqueles livros complicados, houve diversão. Não muito. Um pouco. O aceitável para projetar uma linha no horizonte. E isso significa que foram superadas as dificuldades iniciais, secundárias e terciárias encontradas nos livros de Edward Morgan Forster, Erich Averbach, Jean Pouillon e Terry Eagleton. Também expressa o instinto de sobrevivência de quem atravessou (a nado!) o oceano revoltoso que abrange os textos de Georg Lukács, Tzvetan Todorov e Gerard Genette. Pensando bem, nem o velho e bom Massaud Moisés conseguiu diminuir os obstáculos. A teoria bruta não é (nunca foi, nunca será) exatamente o mesmo que tomar chá com torradas no final da tarde. Mais do que coragem, o sujeito que resolve seguir pelos caminhos da literatura precisa estar preparado para superar uma série de ameaças e riscos. Em compensação, sempre há a possibilidade (única!) de não conseguir ganhar o suficiente para pagar o aluguel. E, claro, não cabe descartar a hipótese (bastante plausível) da loucura.

Trocando em miúdos, esse sujeito se imagina como o portador de uma pequena bagagem intelectual, o suficiente para superar os rigores de alguns invernos e transmitir o conhecimento para os alunos do curso de letras, aves raras em um mundo em decomposição intelectual, política e econômica (não necessariamente nessa ordem).

O problema é que, em um dia qualquer, ele precisa trabalhar com algo inesperado. A famosa pedra no meio do caminho encontra a sua mais completa tradução em uma opinião ainda não codificada. Ele, que sempre (sempre é um exagero, digamos, que algumas vezes) confiou nos livros para obter respostas que não dependem da prática empírica, ficou estarrecido. Aquilo estava completamente fora de qualquer parâmetro ao seu alcance.

Em Um Conto Real (incluído no livro A Primeira Pessoa, da escocesa Ali Smith), dois personagens estão conversando. Um daqueles diálogos somente possíveis entre amigos. Bobagens entre camaradas. Ou um pouco mais do que isso. O mais jovem, talvez tentando impressionar o mais velho, defende uma tese sobre as diferenças que existem entre o romance e o conto. Evidentemente, não se trata de nenhuma dessas proposições acadêmicas sobre complexidades na carpintaria narrativa, narradores múltiplos, número de personagens ou quantidade de páginas. Esses preciosismos não fazem parte do discurso. Sem preocupação com escrúpulos derivados do politicamente correto, o rapaz afirma que o romance é uma puta velha e flácida. E completa o raciocínio assegurando que essa estrutura narrativa [tem] lá a sua serventia, [é] espaçosa, quentinha e conhecida (...) mas a bem da verdade [é] meio frouxa e larga demais. Em relação ao conto, observa que é uma deusa leve, uma ninfa magrinha, dessas que poucos conseguem dominar e que, por isso, ainda está em boa forma.

Nenhum livro fornece discussões desse nível. Quer dizer, poucos têm a ousadia de empregar metáforas que misturam informalidade e sacanagem em doses capazes de fornecer embriaguez e dor de cabeça na mesma proporção. Diante do poder transubstancial das palavras, que sugerem diversos níveis de subversão intelectual, comparar o romance e o conto com imagens sexuais constitui uma forma inusitada de corromper o pensamento. A pornografia e o erotismo, como alertava o Marquês de Sade, no século XVIII, fazem parte do imaginário humano – mesmo que muita gente tente negar essa obviedade. Em outras palavras, colocando a literatura no proscênio, cabe lembrar que a narrativa (comportada ou não) precisa andar de mãos dadas com o discurso revolucionário. Além disso, a trama textual costuma brincar de esconde-esconde com o autêntico e o simulacro, embaralhando os fios narrativos, despertando brasas adormecidas e apagando fogos de palha. E, mais importante, renovando a linguagem. Ao lado das imagens inesperadas, das figuras de linguagem criativas e da simplicidade narrativa, os lugares-comuns, os clichês e os chavões adquirem súbita e renovada importância, pois se transformam (para o bem, para o mal) em ferramentas de comunicação.

Uma página depois, um terceiro personagem da Ali Smith acrescenta um pouco mais de sabor ao debate, Um conto é como uma ninfomaníaca porque os dois gostam de ficar com todo mundo – ou entrar em um monte de antologias – mas nem um nem outro aceitam dinheiro em troca do prazer.


Difícil ficar impassível diante dessa exposição crua, perigosamente próxima da realidade concreta do leitor. A teoria costuma se afastar desse tipo de coloquialismo. Linguagem é poder. E isso significa que – historicamente – o conhecimento é controlado pelos "iniciados”. Transparência e inteligibilidade não fazem parte do pacote. No mesmo tom, a distribuição do conhecimento deve ser evitada. Ou não. Depende da circunstância e da oportunidade. Talvez mais da segunda do que da primeira.

A analogia entre romance e conto, prostitutas e ninfas, mais do que um escândalo reflexivo ou uma brincadeira estranha com o leitor, produz um curto-circuito mental. Tanto que a narradora do conto da Ali Smith não consegue se controlar e faz um comentário exemplar, Eu fiquei imaginando, à toa, quantos dos livros da minha casa eram comíveis e o quanto eles seriam bons de cama. Sem precisar enumerar preferências ou graus de safadeza, qualquer amante (!!!) da literatura, em algum momento, imaginou algumas tolices similares. Ler é buscar o prazer – incessantemente.

Ao mesmo tempo, sem querer entrar no mérito da tese defendida pelo personagem mais jovem do conto da Ali Smith, como é que alguém pode considerar como meio frouxa e larga demais a estrutura narrativa de romances como O Jogo da Amarelinha (Júlio Cortázar), Se Um Viajante Numa Noite de Inverno (Ítalo Calvino), Grande Sertões: Veredas (João Guimarães Rosa) e Avalovara (Osman Lins)? No mesmo tom, dezenas de contos se caracterizam pela mesmice de linguagem e pela repetição temática – muito semelhantes com aquelas moças que ficam “rodando a bolsinha” nas esquinas da vida.

Para concluir, cabe dizer que o tal sujeito, professor de literatura, está recomendando para amigos, alunos e demais interessados o conto da Ali Smith. Em um mundo em que a literatura se transformou em uma disciplina descartável, ele – pateticamente – se esforça para dividir o conhecimento.

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