O conto é a menor unidade da prosa. A
narrativa deve conter um único conflito, uma única célula dramática. A isso se
soma a presença de poucos personagens, espaço restrito e a ação superando a
descrição. Ou seja, concisão, limpidez e contundência. Júlio Cortázar o comparou
com uma luta de boxe, dizendo que, enquanto o romance procura vencer por
pontos, o conto deve nocautear. E, de preferência, nos primeiros rounds. Claro,
nem sempre isso é possível. Em algumas narrativas curtas atingir o “queixo de vidro” do adversário
significa um esforço extraordinário. Muitas vezes impossível. Nesses casos, cabe
à tessitura narrativa – costurada pela linguagem – suprir eventuais dificuldades
que o conjunto de acontecimentos textuais não consegue ultrapassar.
Ricardo Piglia propõe uma tese
complementar, Um conto sempre conta duas histórias. A história visível aos
olhos do leitor esconde uma história secreta – que somente pode ser acessada se houver um esforço para avançar além do conteúdo que está sendo revelado. As duas
histórias devem convergir para um único ponto – embora desenvolvam caminhos e
objetivos diferentes. Cabe ao leitor encontrar os momentos de interseção e dispersão
– e se surpreender com os resultados dessa descoberta.
Miguel del Castillo, filho de um
uruguaio com uma brasileira, conseguiu traduzir esses conceitos com elegância. Restinga
(dez contos e uma novela) tem uma vantagem adicional. Ao escolher que algumas
pontas do novelo ficcional fiquem soltas, mostra que é possível conservar a
qualidade literária sem precisar resolver todas as tensões produzidas pela
narrativa. Os finais “em aberto” (que exigem grande esforço imaginativo
do leitor) multiplicam o potencial de cada enredo – que se expandem na medida em que surgem novos entendimentos.
Os onze textos estão centralizados no
universo tempestuoso das questões políticas e dos problemas afetivos. Ao mesmo
tempo, produzem um importante curto-circuito – que reflete a lenta destruição do
entendimento da realidade. A barbárie, independente do grau de violência gerada
pela corrosão das relações humanas, produz perturbações que não encontram
solução ou anestésico.
Violeta, texto publicado – em versão
ligeiramente modificada – na revista Granta, nº 9, volume dedicado aos
“melhores jovens escritores brasileiros”, apresenta as múltiplas fraturas
(físicas, psicológicas) produzidas naqueles que sobreviveram à repressão policial
promovida pela ditadura uruguaia. Cabe ao neto de Violeta (que foi presa e
torturada) recuperar, com todas as imprecisões de quem conta uma história que
não vivenciou, o passado perdido.
No conto homônimo ao título do livro, Laura
está morando com a mãe – que lhe pede ajuda para visitar a restinga de
Marambaia, no Rio de Janeiro. Não há explicação lógica para essa solicitação. Exceto
que parece ser o último pedido de alguém que está próximo da morte. Contra todas as
expectativas, realizar o desejo da mãe não acalma a situação. Ao contrário,
abre as portas para um novo mal-estar.
Em Olimpíadas, o passado e o presente
se unem para contrastar o menino que gostava de jogar futebol e o pai de um
portador da síndrome de Down. Entre as duas histórias, projeta-se o interstício
emocional de quem, em algum ponto da vida, se omitiu em momento decisivo.
A falta de sintonia entre o pai e o
filho está expressa em Cancun – que relata a visita de um menino de onze anos
ao pai, que mora no México. O pai parece estar muito ocupado com alguma
atividade e encarrega um empregado de entreter o filho – que não possui
maturidade para compreender os acontecimentos que presencia.
Em Colônia parece faltar alguma peça. A
narradora não consegue explicar claramente as conexões que existem entre o
casamento da irmã e o incêndio no apartamento em que a irmã morava com o
marido. A imaginação do leitor é convocada para estabelecer uma ponte entre os
interstícios criados no texto.
O texto mais longo, Laguna, inicia
como uma road story e termina com uma confusa ruptura amorosa, em uma praia
próxima de Punta del Este. O narrador deseja conhecer o Uruguai, Valentina não
quer continuar trabalhando como guia no Teatro Solís, em Montevidéu. A viagem
parece ser uma solução para os dois. Em algum momento, as múltiplas necessidades
encontram alívio na união dos corpos. A complicação maior surge quando encontram uma
casa que foi abandonada antes de ser terminada. A felicidade perde um pouco de
seu brilho na medida em que Valentina passa a ter um comportamento errático. Quer
terminar a construção, quer viver uma vida conjugal. Esses objetivos entram em
conflito com os planos de quem precisa voltar para o Brasil.
Os dez contos e uma novela que constituem Restinga causam no leitor mais inquietação do que sossego. Essa é a maior qualidade do livro.
Os dez contos e uma novela que constituem Restinga causam no leitor mais inquietação do que sossego. Essa é a maior qualidade do livro.
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