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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

RESTINGA

O conto é a menor unidade da prosa. A narrativa deve conter um único conflito, uma única célula dramática. A isso se soma a presença de poucos personagens, espaço restrito e a ação superando a descrição. Ou seja, concisão, limpidez e contundência. Júlio Cortázar o comparou com uma luta de boxe, dizendo que, enquanto o romance procura vencer por pontos, o conto deve nocautear. E, de preferência, nos primeiros rounds. Claro, nem sempre isso é possível. Em algumas narrativas curtas atingir o “queixo de vidro” do adversário significa um esforço extraordinário. Muitas vezes impossível. Nesses casos, cabe à tessitura narrativa – costurada pela linguagem – suprir eventuais dificuldades que o conjunto de acontecimentos textuais não consegue ultrapassar.

Ricardo Piglia propõe uma tese complementar, Um conto sempre conta duas histórias. A história visível aos olhos do leitor esconde uma história secreta – que somente pode ser acessada se houver um esforço para avançar além do conteúdo que está sendo revelado. As duas histórias devem convergir para um único ponto – embora desenvolvam caminhos e objetivos diferentes. Cabe ao leitor encontrar os momentos de interseção e dispersão – e se surpreender com os resultados dessa descoberta.

Miguel del Castillo, filho de um uruguaio com uma brasileira, conseguiu traduzir esses conceitos com elegância. Restinga (dez contos e uma novela) tem uma vantagem adicional. Ao escolher que algumas pontas do novelo ficcional fiquem soltas, mostra que é possível conservar a qualidade literária sem precisar resolver todas as tensões produzidas pela narrativa. Os finais “em aberto” (que exigem grande esforço imaginativo do leitor) multiplicam o potencial de cada enredo – que se expandem na medida em que surgem novos entendimentos.

Os onze textos estão centralizados no universo tempestuoso das questões políticas e dos problemas afetivos. Ao mesmo tempo, produzem um importante curto-circuito – que reflete a lenta destruição do entendimento da realidade. A barbárie, independente do grau de violência gerada pela corrosão das relações humanas, produz perturbações que não encontram solução ou anestésico.

Violeta, texto publicado – em versão ligeiramente modificada – na revista Granta, nº 9, volume dedicado aos “melhores jovens escritores brasileiros”, apresenta as múltiplas fraturas (físicas, psicológicas) produzidas naqueles que sobreviveram à repressão policial promovida pela ditadura uruguaia. Cabe ao neto de Violeta (que foi presa e torturada) recuperar, com todas as imprecisões de quem conta uma história que não vivenciou, o passado perdido.

No conto homônimo ao título do livro, Laura está morando com a mãe – que lhe pede ajuda para visitar a restinga de Marambaia, no Rio de Janeiro. Não há explicação lógica para essa solicitação. Exceto que parece ser o último pedido de alguém que está próximo da morte. Contra todas as expectativas, realizar o desejo da mãe não acalma a situação. Ao contrário, abre as portas para um novo mal-estar.

Em Olimpíadas, o passado e o presente se unem para contrastar o menino que gostava de jogar futebol e o pai de um portador da síndrome de Down. Entre as duas histórias, projeta-se o interstício emocional de quem, em algum ponto da vida, se omitiu em momento decisivo.

A falta de sintonia entre o pai e o filho está expressa em Cancun – que relata a visita de um menino de onze anos ao pai, que mora no México. O pai parece estar muito ocupado com alguma atividade e encarrega um empregado de entreter o filho – que não possui maturidade para compreender os acontecimentos que presencia.

Em Colônia parece faltar alguma peça. A narradora não consegue explicar claramente as conexões que existem entre o casamento da irmã e o incêndio no apartamento em que a irmã morava com o marido. A imaginação do leitor é convocada para estabelecer uma ponte entre os interstícios criados no texto.

O texto mais longo, Laguna, inicia como uma road story e termina com uma confusa ruptura amorosa, em uma praia próxima de Punta del Este. O narrador deseja conhecer o Uruguai, Valentina não quer continuar trabalhando como guia no Teatro Solís, em Montevidéu. A viagem parece ser uma solução para os dois. Em algum momento, as múltiplas necessidades encontram alívio na união dos corpos. A complicação maior surge quando encontram uma casa que foi abandonada antes de ser terminada. A felicidade perde um pouco de seu brilho na medida em que Valentina passa a ter um comportamento errático. Quer terminar a construção, quer viver uma vida conjugal. Esses objetivos entram em conflito com os planos de quem precisa voltar para o Brasil.

Os dez contos e uma novela que constituem Restinga causam no leitor mais inquietação do que sossego. Essa é a maior qualidade do livro.

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