O lugar do desejo sexual costuma ser um
dos mais significativos tabus da literatura brasileira. Ontem, hoje, sempre. E
na medida em que algum tipo de deslocamento se torna perceptível, a política hipócrita
do don't ask, don't tell (não pergunte, não conte) se impõe com vigor. Ou seja, o ordenamento
social (que adota modelos estáveis, sem o mínimo traço de ambiguidade)
recomenda evitar qualquer tipo de referência ao amor que não ousa dizer o seu
nome, conforme a célebre definição de Oscar Wilde, além de outras variações de comportamento sexual. A historiografia literária
lembra, a todo instante, a maneira não muito cordial com que foram recebidas (pelos
leitores, por parte da crítica) narrativas ficcionais como O Bom Crioulo (Adolfo
Caminha, 1895), Crônica da Casa Assassinada (Lucio Cardoso, 1959), A Fúria
do Corpo (João Gilberto Noll, 1981), Em Nome do Desejo (João Silvério
Trevisan, 1983), Vagas Notícias de Melinha Marchiotti (João Silvério
Trevisan, 1984), Morangos Mofados (Caio Fernando Abreu, 1987), Keith Jarret
no Blue Note (Silviano Santiago, 1996), Berkeley em Bellagio (João Gilberto
Noll, 2002) e A Inevitável História de Letícia Diniz (Marcelo Pedreira, 2006),
entre muitos outros livros que optaram por transgredir com as regras do “bom
comportamento” da classe média. Evidentemente – sem fazer concessões aos riscos
propostos pela linguagem crua e agressiva –, a publicação de cada um desses
textos serviu para ampliar o conflito.
Contemporaneamente, a sociedade
brasileira tem registrado algumas mudanças de conduta. A intolerância diminuiu.
Mas não muito. Provavelmente se tornou mais dissimulada. Ou sutil. Difícil
precisar o que está acontecendo no interior do universo conservador que
caracteriza a literatura produzida pelos brasileiros. Exemplos significativos
dessa postura inovadora podem ser comprovados com a publicação de alguns romances
de excelente qualidade literária – seja pelo domínio técnico, seja pela forma
delicada com que os temas “proibidos” são abordados. Romances como Todos Nós
Adorávamos Caubóis (Carol Bensimon, 2013), Nossos Ossos (Marcelino Freire,
2013) e A Vez de Morrer (Simone Campos, 2014), por exemplo, colocam em cena
questões afetivas e sexuais que – de uma forma ou de outra – costumam ser
omitidas. Ou ignoradas.
O romance Sergio Y. Vai à América, de
Alexandre Vidal Porto, também propõe um tema correlato – mas com um enfoque
diferenciado, que se concentra no olhar sensível do observador, que vê e relata
os acontecimentos à distância. Assim como o leitor, o narrador está reduzido à
condição de espectador – indivíduo que nada pode fazer para alterar a sequência
de fatos que se desenrolam diante de seus olhos.
O psiquiatra Armando, setenta
anos, transforma o seu relato memorialista em um ponto de reflexão para entender os
motivos que resultaram em significativa mudança na vida de um de seus
pacientes. Nas suas anotações sobre o caso, recorda que Sergio Emilio
Yacoubian, dezessete anos, frequentemente se queixava nas sessões de terapia de ser
infeliz. Aparentava ser um garoto deprimido. Um caso similar a tantos outros.
Uma interrupção no tratamento ocorre quando
Sergio viaja para Nova York, em férias. Armando recomenda-lhe uma visita ao
Museu da Imigração, no extremo sul de Manhattan, Você, que gosta de histórias
de coragem, não pode deixar de ir ao museu de Ellis Island. Pode ser que você
ache interessante saber mais sobre os imigrantes, ver seus objetos pessoais,
conhecer histórias de gente que, como Areg [bisavô de Sergio], apostou tudo na
própria felicidade.
Na volta, o paciente lhe entrega alguns
presentes (comprados no Museu) e declara, Dr. Armando, acho que descobri uma
maneira de ser feliz. Tive uma revelação em uma de nossas conversas e acho que
já sei como encaminhar minha vida. Sinto que já não preciso voltar aqui.
Desculpe-me não ter dito nada antes, mas eu não sabia. Obrigado por tudo.
O interregno cessa cinco anos depois, quando
Armando descobre que o rapaz faleceu, em Nova York. Sem entender as razões da
tragédia, volta a se interessar pelo caso inconcluso de Sergio. O que descobre não
o conforta. Ao contrário, instala a perplexidade. Em Nova York, Sergio se
transformou em Sandra. Literalmente. O sofrimento de estar preso em um corpo estranho,
que não lhe pertencia, desapareceu. A migração de gênero (através de
procedimento cirúrgico, medicação e auxílio psicológico) resolveu a angústia de
Sergio, mas causou muita aflição em Armando. Como é que ele não havia percebido
o que estava acontecendo com o rapaz? Será que estava perdendo a competência médica? Nesse momento, Armando – precisando encarar o fracasso
profissional – descobre que nada pode ser considerado mais difícil do que prever
ou controlar o que envolve a essência humana. Os mecanismos de
defesa das pessoas são muito complexos. Os dos psiquiatras são piores ainda.
Os demais elementos narrativos são
consequência do existir. Inclusive a morte violenta de Sergio. Mas, para a
carpintaria literária, que está concentrada basicamente na figura de Armando,
parte desses itens é acessória ou periférica. De qualquer forma, cansado,
envolto pelo estoicismo filosófico, ele coloca a vida de Sergio/Sandra em
perspectiva e conclui que Torno-me mais mórbido do que gostaria, mas é porque
preciso me forçar a ter presente – eu, que tenho tendência a me sentir imortal
– que todos morrermos em algum momento. Alguns prematuramente, como Sandra. Outros,
muito depois do prazo de validade. Claro, ele é os "outros".
De uma forma pouco usual, no consultório
de uma médica especializada em transgêneros, Cecilia Coutts, Armando desvenda
aquilo que vários meses de terapia não foram suficientes para tornar
inteligíveis Na loja de souvenires do Museu da Imigração, em Ellis Island, a
chave do mistério abriu a porta que parecia inexpugnável: o "Y" do título do livro revelou ser o "X" da questão.
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