Cena do filme O Leitor, baseado no romance Der Vorleser, de Bernhard Schlink |
Esporadicamente alguém se manifesta em
jornais, revistas e internet sobre os péssimos índices de leitura no Brasil.
São opiniões divergentes, repletas de preconceitos e sem muita substância. Em
muitos casos, enfocam aspectos principais, secundários e acessórios – sem saber
qual é qual e as suas relevâncias. Poucas vezes atingem o ponto nevrálgico. Um
desses casos típicos está retratado na pesquisa sobre os hábitos de lazer
cultural dos brasileiros, realizada pela Federação do Comércio (Fecomércio) do
Rio de Janeiro, em conjunto com o SESC-Rio e o SESI-Rio, e que aponta que, em
2014, sete entre dez brasileiros não leram um único livro.
Contemporaneamente, o analfabetismo está
controlado – se as informações divulgadas pelo Ministério da Educação forem
confiáveis. No entanto, as políticas de
incentivo à leitura são, no mínimo, insuficientes. Muito ainda precisa ser
feito nessa área. O número de bibliotecas escolares está aquém do desejado – e
muitas delas foram substituídas por salas de informática, na vã pretensão de
que o conhecimento superficial, fornecido pela internet (através do Ctrl C +
Ctrol V), será capaz de produzir alunos mais inteligentes. Faltam contadores de
histórias – profissionais capazes de incentivar novos leitores, através da
força da palavra oral. Faltam oficinas de redação criativa – onde o poder da
palavra escrita se projeta como criatividade e inventividade. Falta compromisso
escolar, visando uma transformação significativa no atual déficit de leitura.
Outros analistas, tomando como base sólida e indiscutível os números
da pesquisa, preferem lançar a culpa pelos baixos índices de leitura em
questões pontuais como tempo e dinheiro. Ou seja, aquele que precisa sobreviver às
dificuldades impostas pelo mercado de trabalho não consegue usufruir
continuamente da leitura; além disso, os livros são muito caros para o poder
aquisitivo dos brasileiros. Duas bobagens. E das grandes. A primeira pode ser
desconstruída facilmente. O tempo é relativo. É um elemento consequente às
ações sociais dos indivíduos. Ao lado das oito horas regulamentares de
trabalho, onde, “em princípio”, a leitura está excluída, há espaços temporais
vagos que podem ser utilizados – e que, na falta de uma melhor explicação,
costumam ser desperdiçados. Ou seja, o ato de ler pode ser realizado no
banheiro, dentro do transporte coletivo, na fila do banco, depois do almoço,
antes de dormir. A segunda, além ser um equívoco, porque o valor de um livro
novo está atrelado às demandas do mercado e não ao poder aquisitivo do leitor,
ignora a existência de alternativas bastante simples. Além das bibliotecas
públicas e institucionais, que emprestam livros para os associados, ainda
existem os sebos físicos e virtuais, que vendem livros usados por preços
bastante acessíveis. O interesse é condição principal para quem quer gozar dos
prazeres da leitura.
The Readers. Pintura de Nikki O'Brien. |
Diante das estatísticas, que anunciam um
futuro catastrófico para a leitura, inclusive na área dos e-books (que os ingênuos consideram a tábua de salvação da modernidade), sempre surge alguma alma indignada,
reclamando por mudanças. Esse esforço, típico de quem gosta de produzir
encenações de efeito, procura encobrir o elementar: o Brasil sempre foi, é, será,
um país com grandes problemas nas áreas da escrita e da leitura. Em qualquer
época – a partir do descobrimento – a relação da população com os livros foi,
é, será assustadora. Nesse sentido, convém lembrar, como é de conhecimento geral (embora
muitos façam o jogo das aparências e neguem), que a indústria editorial
brasileira não pode ser classificada como um caso de sucesso empresarial. As
baixas tiragens, raramente superiores a 3.000 exemplares, fornecem uma margem
de lucro insignificante. E, em muitos casos, desestimulante.
Uma proposta simples e prática centraliza
o problema nos diversos níveis do ensino escolar. E, basicamente, na forma com
que o amor pela literatura é transmitido aos alunos. Parte dos professores que
trabalham com a língua portuguesa – muitos sem habilitação na área de letras – não
considera a literatura como um elemento pedagógico transformador. Caminhando em
sentido oposto, concentram a dinâmica de ensino no “decoreba” gramatical e na
camisa de força que constitui a “norma culta”. Obviamente, desconhecem (ou
negam) que a literatura pode ser utilizada como uma ferramenta para fornecer
uma formação mais humanística e menos técnica. Ou seja, ignoram uma das
mais importantes possibilidades para incentivar a expansão do conhecimento e da
imaginação.
Biblioteca Angélica, Roma, Itália |
O estudo da literatura, centralizado nas
escolas literárias e em autores e livros que foram descoloridos pelo tempo, não
consegue atrair a atenção dos alunos (seja no ensino secundário, seja na
licenciatura em Letras). Ao contrário, os afastam. Autores mais modernos, menos
“datados”, que utilizam uma linguagem mais próxima da vida “real”, deveriam ser
estudados antes dos clássicos. Ou seja, a linha temporal que constitui a
historiografia literária deveria ser invertida e os “bons” autores somente
deveriam estar ao alcance de quem por eles tivesse interesse. O que estou
dizendo é que nenhum individuo contemporâneo possui paciência ou prazer
estético com a linguagem rebuscada, por exemplo, de José de Alencar (que é um
escritor monumental, mas que não consegue alcançar as inquietações de quem está,
atualmente, em sala de aula). Iniciar o estudo com algumas crônicas ou diversos
contos provavelmente vai atrair – por mais tempo – mais leitores. É hora de
admitir que os alunos não estão (por diversos motivos) preparados para ter
contato com livros repletos de palavras e expressões “fora de moda”. O mesmo se
pode dizer de temas que lhes parecem inalcançáveis.
Trabalhar com a literatura significa
aceitar – constantemente! – a mudança de paradigmas. Significa aceitar que há
um mundo repleto de surpresas esperando pelo leitor. E, fundamentalmente,
significa que o futuro de cada um de nós (leitores, professores, editores,
livreiros) está em jogo na medida em que a barbárie (agressiva e ágrafa) bate
nas portas da civilização.
O saber está conectado com o sabor (em
múltiplos sentidos, inclusive o etimológico). Negar isso equivale ao admitir
que a causa está perdida.
O autor rem razão, ao afirmar que: "Autores mais modernos, menos “datados”, que utilizam uma linguagem mais próxima da vida “real”, deveriam ser estudados antes dos clássicos."
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