Adam Gordon, protagonista e narrador de Estação Atocha, romance de Benjamin S. Lerner, com seu espanhol lacunar, está
morando em Madri. Vive de uma bolsa de estudos, concedida por uma fundação
universitária e/ou literária. Deve desenvolver alguma atividade acadêmica –
embora ninguém (nem mesmo ele) tenha conhecimento do conteúdo desse projeto. Talvez
seja traduzir vários poetas espanhóis para o inglês, talvez seja escrever um longo
poema inspirado por Espanha. Enquanto isso não se aclara, o rapaz procura manter um
fio de conexão com a realidade objetiva com a ajuda dos cinco cavaleiros do apocalipse:
café, tabaco, álcool, haxixe e anfetaminas.
Adam é um artista que finge ser artista.
Um trapaceiro e/ou tapeceiro de equívocos e mal-entendidos. Simultaneamente,
com olhos aguçados para a contemporaneidade (estágio histórico onde o lirismo e
a crueldade dividem corações e mentes em pedaços coloridos), o seu olhar oscila
entre a sensibilidade extrema e a insensibilidade absoluta. Seus passeios pelos
museus espanhóis são eventos analíticos de grande profundidade, a vontade de
unir os estilhaços desencontrados de um mosaico que está condenado ao
desaparecimento. Esses momentos, que projetam um passeio por algum parque
de diversões, são relâmpagos que fornecem contorno ao terreno movediço em que a
poesia e a prosa se desencontram. Em compensação, a Espanha é um enigma que ele
não quer solucionar.
Benjamin S. Lerner |
Estação Atocha celebra a prosa
vertiginosa, o discurso fragmentado, imenso/intenso solilóquio sobre a impossibilidade
(de decidir, de amadurecer, de amar). Flerte com o abismo da ininteligibilidade.
Em alguns momentos parece se desequilibrar. Mas, retoma o controle. Recupera a
sanidade. Tudo se faz lúcido, lúdico. Impossível deixar de pensar no prazer que
contorna esse viver em agonia, no suplício que margeia esse impasse. Senti o
formato da dor, mas não a dor em si, Adam repete para si mesmo, como se esse
tipo de pensamento servisse para alguma coisa, além de tentar justificar o injustificável. Tudo é miragem, ilusão, névoa,
outro cigarro de haxixe.
O fluxo narrativo proposto por Adam
lembra, de uma maneira ou outra, o cenário delirante dos livros de Jack Kerouac
e/ou William Burroughs, dois dos poetas/profetas luminosos em que o
estranhamento e o reconhecimento literário são uma constante. As ideias são semelhantes, mas
diferentes. Muito diferentes. Nenhum dos representantes da Geração Beat se
preocuparia em propor arrependimento, nenhum deles escreveria Felizes eram as épocas em que o céu estrelado
representava o mapa de todos os caminhos possíveis, épocas caracterizadas por
uma integração social tão perfeita que, para conectar o herói à totalidade, não
eram necessárias as drogas. Eles procuravam outras coisas, o prazer sem culpa, por exemplo. Por isso, esse “insight” de Adam, negando o hedonismo em que ele está mergulhado, acena para a incompatibilidade que
existe ente o mundo objetivo e o mundo em que os heróis perdem a substância –
transformados em figuras de papel, destinadas a desaparecem no tempo e no afeto
que somente os livros podem produzir.
Estação Atocha, em Madrid |
No dia 11 de março de 2004 ocorreu um
atentado terrorista na Estação Atocha, o complexo ferroviário localizado próxima
da Plaza del Emperador Carlos V, em Madri. Três bombas detonaram dentro do trem
21431, que estava dentro da Estação. Quatro bombas foram deflagradas dentro do trem 17305, que estava a meio quilometro de Atocha. Morreram 191 pessoas e 1700 ficaram feridas.
Adam, envolto em uma nuvem de ataraxia, parece não acreditar que está participando de um momento histórico, o 11-M, equivalente espanhol, em dor e sofrimento, ao 11 de setembro estadunidense. Falta-lhe sensibilidade política para entender os sentimentos do Outro: As pessoas gritavam palavras de ordem que diziam que aquilo não era chuva, e sim Madri chorando, e eu achei o slogan complexo demais para ter surgido espontaneamente. Teresa, Arturo e Rafa estavam gritando também, e eu me juntei a eles, mas minha voz me soou desafinada, falsa, e temi que ela sobressaísse demais, que não se confundisse com as outras. Deslocado, ele quer estar em outro lugar. Quer fugir. Nenhuma novidade em quem, em alguns momentos, se comporta como um adolescente. Ou como um estadunidense, liberto das amarras familiares, que ambiciona permanecer "chapado" o máximo de tempo possível. Enfim, o comportamento típico de alguém que se recusa a encarar a vida adulta.
Cultivando a imaturidade e o egoísmo, incompetente para escolher entre Isabel e Teresa, as duas mulheres que o assustam e o excitam, Adam faz reflexões sobre a ausência de estabilidade econômica. Sem muito esforço, percebe que o valor dos indivíduos está atrelado com a capacidade de consumo. Viver custa caro – independente dos múltiplos significados que acompanham essa constatação.
Adam, envolto em uma nuvem de ataraxia, parece não acreditar que está participando de um momento histórico, o 11-M, equivalente espanhol, em dor e sofrimento, ao 11 de setembro estadunidense. Falta-lhe sensibilidade política para entender os sentimentos do Outro: As pessoas gritavam palavras de ordem que diziam que aquilo não era chuva, e sim Madri chorando, e eu achei o slogan complexo demais para ter surgido espontaneamente. Teresa, Arturo e Rafa estavam gritando também, e eu me juntei a eles, mas minha voz me soou desafinada, falsa, e temi que ela sobressaísse demais, que não se confundisse com as outras. Deslocado, ele quer estar em outro lugar. Quer fugir. Nenhuma novidade em quem, em alguns momentos, se comporta como um adolescente. Ou como um estadunidense, liberto das amarras familiares, que ambiciona permanecer "chapado" o máximo de tempo possível. Enfim, o comportamento típico de alguém que se recusa a encarar a vida adulta.
Cultivando a imaturidade e o egoísmo, incompetente para escolher entre Isabel e Teresa, as duas mulheres que o assustam e o excitam, Adam faz reflexões sobre a ausência de estabilidade econômica. Sem muito esforço, percebe que o valor dos indivíduos está atrelado com a capacidade de consumo. Viver custa caro – independente dos múltiplos significados que acompanham essa constatação.
Monumento em homenagem às vítimas do atentado de 11 de março de 2004 |
Estação Atocha é um romance
a-pós-a-moderna-idade, embora esteja sedimentado na tradição burguesa de
relatar a epopeia do anti-herói, do sujeito que ambiciona quebrar todas as regras
do bom comportamento e que fracassa da mesma maneira que fracassaria se fosse
bem comportado. Sobra o percurso e a sensação de que estava escorado em algum tipo de justificativa. Não por acaso, Adam observa que Minha pesquisa me ensinara que esse
tecido de contradições que constituía a minha personalidade era, na melhor das
hipóteses, um poema, em que por “poema” se entende a incapacidade da linguagem
de cumprir a potencialidade que ela mesma afigura; só então minha desonestidade
constituiria um projeto, e não apenas uma patologia; só então minha
autoalienação seria definida como crítica, estética, em vez de ser um efeito
colateral do que os experts definiriam
como um problema de dependência de substâncias psicotrópicas, definição
bastante apropriada, que tem origem não tanto no meu anseio de evadir do real,
mas no meu desejo de ter um pretexto químico para suprir a indisponibilidade do
real.
Nas páginas finais, ao ver que alguns de
seus poemas, traduzidos ao espanhol, foram publicados, Adam comenta que o livro
ficou Esteticamente lindo, com uma qualidade anacrônica, apropriada a um
veiculo de comunicação defunto. Talvez ele tenha razão, a literatura impressa
está morta – mas,... Sem se importar com os esforços necrófilos, a ficção
continua produzindo bons livros. Estação Atocha é um bom exemplo.
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