São as tragédias familiares que causam
mudanças significativas na vida. O Próximo da Fila, primeiro romance de
Henrique Rodrigues, está centrado em, pelo menos, dois desses momentos
complicados em que o instinto de sobrevivência precisa ultrapassar o poder de
sedução do abismo. Diante das dificuldades, tudo se transforma em provação. Ou
melhor, em superação.
O Próximo da Fila constitui uma versão
brasileira do mito do paraíso perdido – retratada pelos olhos de um adolescente
de classe média, que, em razão da morte do pai, precisa se reinventar como
adulto. Diante de inesperada dificuldade econômica, a sua família começa a procura por alternativas para sobreviver. Pressionado para ingressar – prematuramente – no
mercado de trabalho, o protagonista e narrador (inominado, em primeira pessoa)
consegue o primeiro emprego em 1993, em uma lanchonete de fast-food. Ingênuo,
sem preparação (teórica ou prática) para entender as sutilezas que envolvem as engrenagens
capitalistas, o protagonista, em um primeiro instante, não percebe que a empresa adota um
esquema de produção voltado à maximização dos lucros e ao rebaixamento da
mão-de-obra – todos aqueles que não se adaptam ao “padrão” proposto pela
franquia são descartados. Assim, contrariando toda a sua experiência anterior, adquirida
em âmbito restrito (família, escola, vizinhança), as relações sociais ficam
atreladas ao desempenho profissional. Todos os seus colegas de trabalho são
sombras que surgem e desaparecem com o passar do tempo. Mesmo aqueles que
conseguem romper com a transitoriedade, e participam de algum episódio incomum,
acabam sendo esquecidos.
Henrique Rodrigues e o primeiro emprego |
Misturando ficção e realidade, o romance
fornece uma interessante perspectiva de quanto se torna penoso superar a
adversidade – produzida por fatores que não podem ser controlados. Essa
experiência (de vida, profissional, afetiva) deixa “marcas nas mãos”. O
rebaixamento econômico contrasta com a riqueza emocional. O leitor comum,
guiado pelo sensorial, encontra elementos de empatia na
narrativa – e, de maneira pouco auspiciosa, constata que a luta dele (do protagonista), em muitos aspectos, pode ser uma espécie de representação da sua
(leitor). Principalmente, se esse leitor não estiver no topo da pirâmide social. Eu nunca coube no espaço da felicidade simples, afirma o protagonista.
Uma das características “visíveis” de O
Próximo da Fila se apresenta na lenta transição da vida coletiva para a vida
individual. O ambiente doméstico (parte inicial da narrativa) se decompõe no cenário
público (a lanchonete). Enquanto as discussões caseiras (envolvendo a mãe e as
tias) se concentram na superação das dificuldades financeiras, os laços familiares se
mantêm intactos. Depois que o protagonista começa a trabalhar na lanchonete, a
tensão diminui, mas a introspecção predomina. Tudo fica um pouco
mais melancólico. Esse fenômeno contamina, inclusive, os personagens mais significativos. As
divertidas idiossincrasias das duas tias desbotam, perdem a importância,
desaparecem. A mãe também vai esvanecendo. As poucas intervenções maternas ocorrem
em momentos pontuais. O mundo conhecido perde a sua dimensão integradora. A
paixão se transforma em algo negativo, próximo do indescritível. Apenas a
namorada consegue fornecer alguma substância aos relacionamentos afetivos do protagonista. Nas páginas finais do romance, sobra apenas o narrador – e o seu
relato.
No intervalo entre a primeira e a
segunda tragédia, há espaço para descobrir, entre outras preciosidades, que a
máquina usada para moer a carne dos sanduíches também serve para moer
sentimentos. Embora não seja exatamente isso o que acontece em O Próximo da
Fila, as páginas finais do livro servem para avisar que a decepção e a
crueldade estão bem próximas.
Henrique Rodrigues é um daqueles
escritores que domina a difícil arte de escrever fácil. Ou seja, ele cria a
ilusão de que não é necessário fazer esforço para produzir um bom texto. Em O
Próximo da Fila (com economia de elementos narrativos, bons diálogos e um
enredo criativo) construiu um bildungsroman (romance de formação) de ritmo
contagiante e que têm como maior qualidade o ponto de vista de um personagem de
baixa extração econômica (fato raro na literatura brasileira contemporânea, que
costuma se concentrar nas “riquezas” burguesas). Escreveu vários livros
infantis e juvenis, e o livro de poemas A Musa Diluída. Organizou as
antologias de contos Como se Não Houvesse Amanhã (inspirada em canções da Legião
urbana) e O Livro Branco (inspirada em canções dos Beatles).
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